Dezembro: menos azáfama, mais ritual.
Dezembro é o mês do fim.
Do fim simbólico de uma certa confusão mas que, à bom estilo do humano, já criámos outra: e assim, com este cerimonial de amor, fechamos o ciclo, as contas, a gaveta, e tudo aquilo que queremos ver renovado no próximo ano.
A PROSA propõe um caminho estreito, fora da avenida principal, que, entre Peter Gabriel, Pasolini e o conceito do Natal, é um caminho iluminado: menos azáfama, mais ritual; menos espetáculo, mais comunidade; menos consumo, mais cuidado.
Peter Gabriel é, desde sempre, um desses artistas que teimam em manter o espiritual, o mitopoético dentro da canção pop, mesmo quando tudo à volta pede apenas eficácia e entretenimento. É um grande ativista, que entre a WOMAD e a WITNESS, colocou a arte ao serviço da justiça social, dos direitos humanos e da proteção dos direitos das comunidades vulneráveis. Em “San Jacinto”, ele transforma uma experiência com povos ancestrais num verdadeiro ritual animista: um corpo urbano, industrial, lançado para o território do medo e do transe, até descobrir que coragem não é dominar o mundo, mas deixar-se atravessar por ele. Já em “Steam”, o ritual desloca-se para o presente saturado de estímulos: o excesso, a máquina do desejo, a publicidade, a cultura da performance. Mas, mesmo aí, há qualquer coisa de liturgia prática – um convite a olhar de frente o vapor do contemporâneo e a reaprender a respirar dentro dele.
“San Jacinto” é, na verdade muito mais: um rito de passagem xamânica, a saída do sistema produtivo para uma imersão nas cosmologias indígenas, onde a montanha, a água e os animais não são cenário, mas entidade. E é precisamente aí que o nosso dezembro começa a encontrar ressonância: quando deixamos de pensar o sagrado como um lugar acima do mundo e passamos a senti-lo como vibração da própria terra.
Pier Paolo Pasolini, no seu Evangelho Segundo São Mateus, faz algo próximo disso com a figura de Cristo. Em vez do épico plastificado, devolve-nos um Cristo de pó e sol, camponês, atravessado pela dureza da história e da política. Não é um herói distante, é um corpo entre outros corpos, um rosto entre outros rostos. A santidade não cai do céu: nasce do chão, do conflito, da fome, das escolhas concretas. Este Cristo, filmado entre pedras, aldeias e rostos anónimos, aproxima-se muito mais de um mundo animista do que de uma abstração desencarnada. É um sagrado que passa pelo real e não foge dele.
E o Natal, quando o despimos da superfície luminosa do consumo, também aponta nessa direção: um recém-nascido num estábulo, no barro, no frio, longe dos centros de poder. O “manger” é uma imagem radical: um Deus que, para nascer, precisa de palha, de animais, de corpos que o acolham. Talvez a nossa época, tão descentrada, esteja justamente a tentar reencontrar o animismo como ontologia possível para o futuro: uma forma de estar no mundo em que a matéria é viva, em que a relação com a terra, com o clima, com as outras espécies, deixa de ser apenas recurso e volta a ser vínculo.
É aqui que sentimos que temos mesmo de falar de crianças e de Natal. Porque o consumo natalício produz uma pedagogia do desejo sem reflexão: ensinamos, ano após ano, que desejar é acumular, pedir, ganhar, abrir embrulhos sem olhar para quem os oferece ou para quem não os pode oferecer. Talvez esteja na altura de descolonizar o Natal. Descolonizar a ideia de que um “bom Natal” se mede pelo volume de caixas debaixo da árvore. Descolonizar a narrativa importada, publicitária, do Pai Natal omnipotente que tudo entrega, e descolonizar também as formas mais subtis de culpa e moralismo que, muitas vezes, vêm agarradas à festa.
Na PROSA, falamos muito de cuidados de si – e de como o cuidado verdadeiro nunca é apenas individual. O que significa, então, educar as crianças para um Natal que não seja uma maratona de posse, mas um exercício de relação? Como é que as ajudamos a desejar de forma menos compulsiva e mais consciente? Como é que as ensinamos a usar a sua imaginação para inventar gestos de partilha, e não apenas listas de presentes? A educação audiovisual entra aqui com força: olhar para as imagens que nos rodeiam, desmontar o que prometem, perceber o que nelas é anúncio e o que nelas pode ser narrativa de mundo comum.
Educar o olhar infantil para a partilha e não para a posse é, no fundo, reescrever o guião do Natal. Talvez um presente importante seja aprender a reconhecer quem está em volta da mesa, quem não chegou a tempo, quem não teve mesa nenhuma. Ensinar que a alegria não é incompatível com a consciência do outro; que o brilho das luzes pode conviver com uma delicadeza mais funda, que não se fotografa tão bem, mas transforma muito mais.
E, no entanto, apesar de toda a maquinaria consumista e do ruído mediático, dezembro continua a ativar uma espécie de egrégora espiritual: um campo invisível onde se concentram expectativas, memórias, gestos de cuidado, tentativas de reconciliação. Nem sempre conseguimos responder a esse chamamento, mas ele está lá. É a vontade de abrandar, de rever, de terminar ciclos, de preparar o novo. É a necessidade de um lugar onde possamos entrar em modo de escuta, como quem entra numa gruta.
Gostamos de pensar a PROSA como um ‘third place’ – nem casa, nem trabalho, mas esse terceiro espaço onde nos podemos reencontrar com as nossas histórias sem máscaras tão rígidas. Talvez, neste dezembro, possamos ir mais longe e assumir a PROSA como uma espécie de caverna paleolítica no contemporâneo: um lugar onde a comunidade se reúne para projetar imagens nas paredes, não para escapar do mundo, mas para o compreender e transformar. Uma caverna onde a luz não vem de écrans infinitos, mas de um pequeno fogo comum: o cinema, a palavra, a escuta, o corpo presente.
Manter esse fogo aceso implica sempre um pequeno sacrifício: oferecer tempo, atenção, cuidado; sair de casa numa noite fria; partilhar dúvidas e fragilidades; ajudar a alimentar a comunidade para que ela não se apague. Não é um sacrifício grandioso – é um gesto repetido, quase impercetível, mas que, se for constante, muda o clima à nossa volta.
Dezembro, para nós, é isso: entrar juntos na caverna, olhar as imagens que a luz tremula permite apreender, e aceitar que a luz que procuramos não surge de fora: nasce, devagar, dentro da escuridão que temos coragem de habitar somente quando estamos todos juntos.

