O prazer da comemoração da deslumbrante vitória, diante da (dificílima) arte de aceitar a efémera derrota para continuar-se a acreditar
Vivemos tempos exigentes para quem acredita em democracia. Não no conceito abstrato, nem na promessa épica de liberdade e justiça, mas na prática concreta, às vezes banal e decepcionante, de (con)viver com os outros — mesmo quando esses outros não pensam como nós. Os resultados eleitorais recentes, em Portugal, provocaram felicidade e esperança intensa para alguns e, um pouco por todo o país e o mundo, deixaram muitas pessoas desanimadas, preocupadas, revoltadas ou tentadas a descrer do processo democrático em si. E, no entanto, é justamente agora que mais precisamos de o defender.
Talvez possamos começar por algo mais leve: nas últimas duas semanas, tivemos por duas vezes o derby de Lisboa. Duas equipas amadas, idolatradas, com adeptos apaixonados, muitas vezes intransigentes — e com o mesmo vencedor em ambas as ocasiões. A superioridade pareceu clara, e quem venceu teve razões para festejar. Mas nem sempre foi assim. E quem perdeu sabe que os campeonatos se fazem de ciclos, de persistência, de jogos que se ganham também numa linha de tempo diferente e não apenas na glória do momento. Na política, como no futebol, há vitórias que deslumbram e derrotas que ensinam. A beleza — e a dificuldade — está em continuar a jogar.
Esta democracia, que já nos foi tirada e reconquistada com o fervor de vidas inteiras, se queremos levá-la a sério, não pode ser vista como um dispositivo de confirmação das nossas certezas morais. Uma das grandes ilusões do nosso tempo tem sido identificá-la exclusivamente com uma agenda ideológica. Como se o pluralismo fosse uma concessão generosa, e não a sua essência mais profunda. Quando se diz que “a democracia é antifascista”, esquece-se muitas vezes que o fascismo, quando emerge, tende a destruir a própria democracia para se manter. Por isso mesmo, proteger a democracia exige mais do que indignação: exige inteligência, coragem e compromisso com a convivência — inclusive com ideias que nos ferem.
Muitas vezes, a frustração vem da sensação de que a razão, a ética ou a cultura “perderam”. Mas será que não é parte do problema termos transformado esses conceitos em armas de exclusão em vez de pontes de escuta? É tudo isso que uma cultura é: pontes de escuta. Quando um discurso se recusa a ser julgado pelos mesmos critérios que aplica aos outros — ou se coloca acima da crítica por se considerar moralmente puro — instala-se um tipo de superioridade estéril, que afasta em vez de dialogar. Em tempos de fragmentação, a linguagem importa: quando os outros deixam de ser interlocutores e passam a ser obstáculos, o espaço comum começa a colapsar.
É nesse terreno que a arte pode oferecer outros caminhos. No início do ciclo QUANDO OS CÚMPLICES SOMOS NÓS, exibiremos Dogville, de Lars von Trier. Um filme em que uma comunidade, convencida da sua justeza e do seu bem, vai lentamente justificando a opressão, o abuso e a destruição do outro. Tudo em nome da coesão, da ordem, da necessidade. E tudo feito com boa consciência. Dogville expõe o lado sombrio da virtude, e convida-nos a pensar em que momento, exatamente, deixamos de ser vítimas e nos tornamos cúmplices.
Aceitar uma derrota, no futebol ou na política, não é render-se — é acreditar que esses e outros jogos continuam. Que há ainda espaço para mudar, para convencer, para transformar. Que há ainda espaço para renovar e reafirmar. É nesse espírito que a PROSA promove espaços de pensamento e partilha. Porque, mesmo quando discordamos, a arte tem a capacidade de nos colocar lado a lado — não como adversários, mas como pessoas que ainda estão dispostas a aceitar que a empatia é parte da nossa cura, e não a fraqueza da civilização, como alguém terá afirmado recentemente. A empatia é a matéria-prima da cura: ao acolher através da arte a dor, o desassossego do outro com força criativa, imaginação e cuidado, transformamos feridas em linguagem. E as feridas cicatrizam-se.