Quem somos quando contamos a nós próprios quem somos?
Um guia introdutório à Identidade Narrativa de Paul Ricoeur
Vivemos rodeados de histórias. Algumas são contadas com palavras, outras com imagens, com sons, com gestos. Há as histórias que herdamos, as que inventamos e, sobretudo, as que contamos sobre nós mesmos — para os outros, mas também para nós. É aqui, neste lugar onde a vida encontra a linguagem, que entra o pensamento de Paul Ricoeur, filósofo francês que nos ajuda a pensar uma pergunta antiga de um modo novo: quem sou eu?
1. A vida é uma narrativa em construção
Para Ricoeur, a identidade não é algo fixo, que carregamos desde o nascimento como um selo. Também não é algo que simplesmente nos acontece. A identidade constrói-se, reconfigura-se, transforma-se ao longo do tempo — e isso acontece, sobretudo, através da narrativa.
Ao contar a própria história, o sujeito organiza acontecimentos, dá-lhes sentido, escolhe o que lembrar, o que silenciar, o que imaginar. Este processo chama-se identidade narrativa: a ideia de que nos tornamos quem somos à medida que contamos — e recontamos — a nossa história.
2. O tempo só ganha forma quando é narrado
Há algo de profundamente humano na forma como lidamos com o tempo. O passado não é só memória, o futuro não é só incerteza — ambos vivem em nós como possibilidades de interpretação. Para Ricoeur, o tempo não é apenas cronologia: é experiência vivida, e essa experiência só se torna compreensível quando é narrada.
Contar uma história é dar forma ao tempo, seja numa obra literária, num filme, ou numa conversa íntima. E é nessa narrativa que vamos compondo quem somos — não de forma definitiva, mas sempre aberta, em movimento.
3. Mesmidade e ipseidade: o que somos e quem somos
Ricoeur distingue dois modos de pensar a identidade:
A mesmidade (idem): aquilo que permanece igual em nós — o nome, os traços, a continuidade biográfica.
A ipseidade (ipse): aquilo que muda, mas permanece fiel a si — a nossa capacidade de nos mantermos nós mesmos, mesmo quando tudo à volta (e dentro) se transforma.
A narrativa serve de ponte entre essas duas dimensões. Permite-nos reconhecer a continuidade (sou o mesmo de ontem) sem negar a mudança (já não sou exatamente quem era). Assim, não somos prisioneiros do que fomos, mas autores — ou coautores — do que estamos a ser.
4. Três tempos da narrativa: prefigurar, configurar, refigurar
Ricoeur propõe um modelo em três tempos para pensar o modo como a narrativa molda a experiência:
a) Prefiguração – é o mundo vivido antes da narrativa. Já está carregado de símbolos, regras, relações.
b) Configuração – é o momento em que organizamos esses elementos numa história. Damos forma ao que era disperso.
c) Refiguração – é o efeito que a narrativa tem sobre quem a ouve ou a lê. É aqui que o leitor ou espectador integra essa história na sua própria experiência.
É este movimento entre vida e narrativa, entre contar e ser transformado pelo que se conta, que torna a narrativa um verdadeiro espaço de subjetivação.
5. O papel da promessa e do carácter
Duas ideias centrais ajudam a pensar como nos mantemos ao longo do tempo:
O carácter é aquilo que nos torna reconhecíveis — as marcas da nossa história pessoal.
A promessa é a nossa capacidade de nos comprometermos com o outro, de mantermos a palavra, mesmo quando tudo muda.
Essas duas dimensões revelam o modo como a identidade se afirma na relação: não somos apenas o que fomos, mas aquilo que dizemos ser, e que nos esforçamos por continuar a ser — com os outros, para os outros.
6. Vida, arte: onde tudo se cruza
Ricoeur acreditava que a literatura (e podemos acrescentar: o cinema, a arte, o teatro) nos oferecem formas de experimentar a nós mesmos através dos outros. Ao entrarmos numa história — como leitores ou espectadores — revemos, ampliamos, ou até redesenhamos a nossa própria narrativa interior.
É por isso que nos comovemos com certas personagens. Por vezes, reconhecemo-nos nas suas fragilidades, nos seus erros, nas suas escolhas. Outras vezes, encontramos nelas uma possibilidade que nos faltava, uma coragem que desejávamos ter.
O filósofo Edgar Morin chamava a isto participação afetiva. E Tarkovsky falava da arte como caminho de purificação, de catarse. Ricoeur, por sua vez, oferece a chave conceptual: refiguração — o momento em que a história que ouvimos se entrelaça com a que vivemos.
7. Uma vida sem autor?
Há, no entanto, uma tensão: nunca somos o autor completo da nossa história. Ricoeur lembra-nos que não escolhemos o nosso início e que não viveremos para contar o nosso próprio fim. O começo e o fim — tão claros na literatura — não existem da mesma forma na vida.
E mais: a nossa história cruza-se com a de tantos outros que nos é impossível narrá-la como algo fechado. O que podemos ser, no máximo, é coautores. Somos responsáveis pelas escolhas que fazemos e pelo sentido que damos ao que nos acontece, mas a narrativa da vida permanece aberta, incompleta — e viva.
8. Em vez de fim, uma travessia
Ricoeur não oferece uma teoria do “eu” como essência intocável. Pelo contrário: o “si” que ele propõe é narrativo, relacional, ético. É um “quem” que se constrói na travessia entre o vivido e o contado, entre o possível e o realizado.
E talvez seja justamente nisso que está a beleza da identidade narrativa: ela não encerra ninguém num rótulo, mas abre espaço para sermos mais do que fomos até aqui.
Neste tempo em que tudo parece acelerar, voltar à pergunta “quem sou eu?”, não como obsessão, mas como abertura ao outro e ao tempo, pode ser um gesto profundamente revolucionário. Contar a própria história não é um luxo. É uma forma de empoderamento, de existir com mais consciência, com mais presença — e com mais escuta.
A Identidade Narrativa é um conceito do filósofo Paul Ricoeur, construído em conferência a partir da soma dos três volumes de TEMPO & NARRATIVA (Temps et récit, de 1983, 1984 e 1985) e o livro O SI-MESMO COMO UM OUTRO (Soi-même comme un autre, de 1990)
RICOEUR, Paul. L’Identité Narrative. In: Revue de Théologie et de Philosophie, vol. 119, 1987, p. 403–423 (Conferência proferida a 3 de novembro de 1986 na Faculdade de Teologia da Universidade de Neuchâtel)
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