“A imagem como naufrágio”: “LIMITE”, de Mário Peixoto [1931 | 1h44’ | BR]
Em um pequeno barco à deriva, duas mulheres e um homem relembram seu passado recente. Uma das mulheres escapou da prisão; a outra estava desesperada; e o homem tinha perdido sua amante. Cansados, eles param de remar e se conformam com a morte, relembrando as situações de seu passado. Eles não têm mais força ou desejo de viver e atingiram o limite de suas existências.
À visão da capa da revista Vu, na qual a face feminina, de frente, olhos abertos e fixos, tem em primeiro plano mãos masculinas algemadas, Mário Peixoto associa outra, "um mar de fogo, uma tábua, uma mulher agarrada". Escrito em apenas uma noite e influenciado pela grave e dolorosa discussão do cineasta com o pai, o scenario de Limite se desenvolve a partir desta "proto-imagem", como a classifica Saulo Pereira de Mello, não-narrativa e fora da diegese do filme, na medida em que todos os demais planos são metamorfoses dela. Alegoria do tema que perpassa Limite, a imagem protéica articula os olhos da mulher (Olga Breno), as mãos algemadas e o mar de fogo para mostrar o desespero e a angústia humana diante da descoberta de sua limitação, bem como a impotência e perplexidade do homem quando confrontado à infinitude da natureza.
A imagem como naufrágio: não como acidente, mas como travessia. Em Limite, o naufrágio é ontológico — a imagem dissolve-se em si mesma, recusa o enredo, abandona o chão firme da narrativa e deriva num mar de sensações, ritmos, memórias partidas. A ausência de palavras, a ausência de rumo, a insistência nos rostos, nas mãos, no tempo que se alonga — tudo isto transforma o olhar do espectador numa experiência de submersão. Aqui, a imagem não serve para mostrar, mas para afundar-nos na condição humana: a finitude, a memória, o tempo e o desejo.
Cada plano em Limite é um fragmento de um corpo que já não sabe se quer viver ou morrer. A paisagem, a água, os olhos — tudo existe como se prestes a desaparecer. A imagem revela-se então como lugar de crise: entre o visível e o invisível, entre a beleza e o desespero, entre o gesto técnico e o pensamento que nele se inscreve. O filme convida-nos a pensar não só o que vemos, mas como vemos, e sobretudo, o que escapa ao olhar. O naufrágio é também o da representação, das certezas, da narrativa como mapa.
Assistir a Limite é aceitar não compreender tudo. É entrar num cinema sem chão, onde a imagem nos pensa. Tal como os personagens à deriva, também nós flutuamos entre aquilo que ainda conseguimos nomear e aquilo que já só pode ser sentido. Por isso, pensar uma filosofia da imagem a partir de Limite é lembrar que a imagem, quando verdadeira, é sempre o lugar do limite — e do naufrágio.
A imagem em LIMITE não representa uma história, mas evoca estados de alma. É matéria visual em fluxo, aberta ao sensível e ao pensamento.
Cada plano é tratado como uma entidade em si, como um poema visual. O filme não nos conduz por enredo, mas por sensações.
Entre a vida e a morte, o tempo e a memória, a imagem oscila — ela mesma está à deriva. Não mostra, mas manifesta.
LIMITE recusa a verdade documental. Trabalha uma verdade interior, fragmentada e poética — quase alucinatória. A imagem reconstrói o passado dos personagens através de fragmentos. O que é mostrado é já memória, nunca o acontecimento em si.
Há uma estética deliberada: reflexos, texturas, fusões. A verdade aqui é uma forma de beleza trágica, que não explica, mas revela.
Toda a estrutura é uma evocação. O tempo não é linear, mas circular, rítmico, feito de retorno e dissolução.
Cada plano é um vestígio, uma ruína de algo que passou. A imagem guarda o que já se perdeu. A montagem e o ritmo suspendem o tempo cronológico. O tempo em Limite é o tempo da lembrança — espesso, estagnado, interior.
A narrativa de LIMITE silencia motivações. Muito do que aflige os personagens permanece fora do visível: a morte, a lepra, o destino.
A relação com a natureza — o mar, o céu, o vento — sugere um mistério maior. O invisível é o indizível da condição humana. Tudo em Limite aponta para o fim: o silêncio, os olhares perdidos, os gestos suspensos. A imagem convoca o que não se mostra: a morte.
As expressões, os olhos, o cansaço físico — tudo é coreografado para comunicar estados internos sem palavras. Olga Breno encara o espectador em planos fixos. É um olhar que rompe a ficção, que nos interpela como testemunhas.
Há desejo e eros no filme, mas embebidos em tristeza, doença, limite físico. O corpo é onde o sofrimento se inscreve.
LIMITE é um gesto de autonomia artística radical. Recusa o cinema comercial, a moralidade narrativa, o conforto do espectador. Os dramas dos personagens são mostrados com sobriedade. Não há dramatização excessiva, apenas persistência do olhar. Em vez de mostrar o Brasil urbano e moderno, Limite fixa-se nos detalhes da natureza, das texturas e dos gestos, resistindo à velocidade e à industrialização.
A montagem constrói não uma história, mas um ritmo interno. As fusões longas e os planos lentos criam um estado meditativo.
A fotografia de LIMITE é tátil: a luz no rosto, o brilho da água, os detalhes do chão. A câmara vê com o corpo.
Não há efeitos técnicos, mas há uma manipulação muito precisa dos elementos formais: fusão, sobreposição, contraste. A técnica está ao serviço da poética.
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