Sangue nos telhados
Setembro é sempre um tempo de regressos.
De regressar à gestão delicada das coisas que são importantes e incontornáveis, de uma forma ou de outra, com mais ou menos aceitação ou coragem.
Mas é importante que este regresso esteja acompanhado de coisas que nos tragam significado ao momento presente. E, as vezes, este regresso pode significar voltar a coisas que moldaram a nossa sensibilidade.
A música faz-nos regressar a estas coisas…
Para quem se apaixonou pelo rock progressivo dos Genesis, cada audição era um reencontro com uma Inglaterra dos anos 70/80, microcosmo que, apesar de mergulhada em crises sociais e políticas, gerava uma música ousada, de resistência subtil e imaginativa. Ouvir novamente esses álbuns é revisitar histórias narradas como epopeias, mas também como críticas afiadas a uma sociedade que preferia manter-se anestesiada. Redescobrir essas canções hoje é mais do que nostalgia: é revisitar um modo de imaginar o mundo, de narrar a vida como espetáculo mitopoético e, ao mesmo tempo, como crítica social.
No centro desse universo estava Peter Gabriel. Depois de sair da banda, transformou-se num artista singular: humanista, inovador, defensor das culturas indígenas, de causas ambientais e de uma eco-ética que o tornou referência para além da música.
(Peter Gabriel terá um ciclo de cinema em dezembro na PROSA, para nos aprofundarmos melhor na sua música.) Contudo, mesmo ausente, a sua herança espectral permaneceu: os Genesis do pós-Gabriel, pelo menos até os dois próximos álbuns, ainda respiravam uma inquietação ética herdada, um olhar desconfiado sobre a política, a violência e a alienação quotidiana.
É nesse registo que se inscreve Blood on the Rooftops (Wind and Wuthering, 1976). À primeira escuta, é uma canção quase doméstica, com referências banais ao chá, ao guarda-chuva e ao tédio televisivo. Mas a função do poema vai além do detalhe: é um retrato ácido de um país mergulhado na complacência. A crítica está no modo como o “deixar estar” se revela como postura política — uma aceitação cínica de políticas abusivas, de guerras longínquas, de injustiças distantes, tudo consumido no conforto do sofá, entre um anúncio e um programa televisivo.
No centro da letra, em pleno refrão, surge a estrofe:
”Let's skip the news, boy, I'll make some tea.
The Arabs and the Jews, boy, too much for me.”
Um momento em que a canção expõe, sem filtros, a nossa ignorância cúmplice. O conflito é reduzido a saturação mediática, demasiado complexo para a consciência passiva de quem prefere mudar de canal. O poema mostra, assim, como o espetáculo das notícias se torna anestesia coletiva — a violência distante é recebida como se fosse apenas mais um espetáculo entre outros.
Essa lucidez atravessa os tempos e ecoa hoje, quando setembro chega com um gesto político esperado: França e Reino Unido anunciaram que vão reconhecer formalmente o Estado da Palestina (nas fronteiras pré-1967, incluindo Cisjordânia, Faixa de Gaza e Jerusalém Oriental). Já o governo português, mais uma vez hesitante, ainda não sabe se o fará na Assembleia-Geral da ONU em setembro. O Parlamento português, inclusive, rejeitou no verão várias propostas que pediam esse reconhecimento imediato.
É aqui que a herança de Blood on the Rooftops ganha corpo: a denúncia de uma política europeia que continua a “deixar estar”, como se a questão fosse apenas incómoda, demasiado distante ou demasiado complexa. Mas não é. Quem morre, quem é privado de casa, território e dignidade, não são “os outros” abstratos das notícias — são vidas concretas, reduzidas a espetáculo mediático para consumo rápido.
Genesis e Gabriel recordam-nos, cada um à sua maneira, que a música pode ser também consciência. Escutá-los hoje não é apenas nostalgia progressiva: é reencontrar a energia progressista, crítica, de uma geração que ousou dizer não à alienação. A canção-poema de 1976 e a hesitação política de 2025 convergem num mesmo diagnóstico: sem ação, sem responsabilidade ética, a humanidade cai na cumplicidade silenciosa.
Mais lá para o fim, ouvimos:
”For when we got bored we'd have a World War, happy but poor.
So let's skip the news, boy, I'll go make that tea.
Blood on the rooftops, too much for me.”
Setembro pode ser, portanto, mais do que um mês de regressos: pode e deveria ser um momento de decisão. Tal como as canções corajosas nos lembram que é preciso tempo para escutar, talvez seja também tempo de recuperar a coragem de agir. Porque continuar a “deixar estar” não é neutralidade — é escolher o lado da indiferença.
Para ouvir “Blood on the Rooftops” ©1976, Steve Hackett, Phil Collins:
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