Travis ou o espectador no ecrã-espelho de Paris, Texas (1984), de Wim Wenders
Publicado na Eikon Journal on Semiotics and Culture nº7
ISSN 2183-6426
DOI 10.20287/eikon
DOI 10.25768/20.04.04.07.07
Author / Autor: Alexandre Nascimento Braga Teixeira
Universidade Nova de Lisboa - Portugal
Neste ensaio sobre as questões de identidade, conhecimento e reconhecimento do eu, surge o cruzamento de potencialidades destes dois dispositivos de projeção/reflexão do ser, tanto na estrutura narrativa como no próprio visionamento do filme como processo de subjetivação: o ecrã e o espelho presentes no filme “Paris, Texas” (1984) de Wim Wenders. Aqui, descortina-se a complexa experiência de Travis, o protagonista, e como é somente através da sua participação como espectador na sua própria trama, que ele apreende o seu mundo e progride na resolução dos seus conflitos. É olhando para este ecrã de memória, reencontro e regresso, que por vezes transforma-se num espelho de intensa profundidade horizontal, que personagem e espectador se encontram e refletem- -se. A partir das ideias do filósofo Paul Ricoeur nos seus estudos sobre narrativa, ou ainda sob as ideias antropológicas de Edgar Morin, num breve olhar para o cinema, e até em pleno uso das próprias palavras de Wenders, pretende este ensaio uma clarificação dos processos que permitem personagem e espectador reconstruírem uma nova conexão, aquando da configuração das suas identidades narrativas.
Palavras-chave: Cinema, espectador, personagem, identidade, processo de subjetivação
Travis or the spectator on the mirror/screen of Paris, Texas (1984), by Wim Wenders
In this essay on the questions of identity, knowledge and recognition of the self, the intersection of the potentialities of these two devices of projection / reflection of the being appears, both in the narrative structure and in the viewing of the film itself as a process of subjectification: the screen and the mirror present in the film “Paris, Texas” (1984) by Wim Wenders. Here, the complex experience of Travis, the protagonist, is revealed, and as it is only through his participation as a spectator in his own plot, that he grasps his world and progresses in resolving his conflicts. It is by looking at this screen of memory, reunion and return, that sometimes becomes a mirror of intense horizontal depth, that character and viewer meet and reflect. Based on the ideas of the philosopher Paul Ricoeur in his studies on narrative, or even under the anthropological ideas in a brief look at the cinema of Edgar Morin, and even in full use of Wenders’ own words, this essay intends to clarify the processes that allow character and spectator to reconstruct a new connection, when configuring their narrative identities.
Keywords: Cinema, spectator, character, identity, process of subjectification
Em Paris, Texas, filme de Wim Wenders realizado em 1984, a acção inicia-se num deserto americano, colorido com ocre e azul profundo, junto do ‘Rio Grande’ na fronteira entre o Texas e o México. Com a música de Ry Cooder, numa daquelas composições musicais que marcaram a história do cinema contemporâneo, vemos este deserto em extensos ‘aerial footages’ onde subitamente, vislumbramos ao longe um ponto vermelho, nele, a vaguear. Este é Travis. Neste deserto mental, a câmara agora, aproxima-se do seu rosto coberto por um velho e imundo boné de ‘baseball’ vermelho. Presenciamos, ainda que sem nenhum discurso, a consequência desta via crucis, deste percurso iniciático da personagem: ele apagou a sua própria mente, desligou-se da sua memória, tornou-a no mesmo deserto que a dramaturgia daquele espaço é-nos revelada segundo Wenders: vemos o deserto dele, nele e por detrás dele. É justamente este ritual de esvaziamento que irá permitir um processo de transformação desta personagem, muda, em silêncio, porque um qualquer discurso o levaria precisamente ao nível que ele pretende, nesta experiência, superar. Wim Wenders é um realizador peculiar, porque o seu trabalho é muito mais do que um simples ’escrever com a câmara’: Wenders é um ‘filmmaker’ na essência do termo, que começa o processo de escrita na sua crítica acutilante do mundo, desde a evolução tecnológica cega, a função semiótica da imagem e do seu uso desmesurado e desorientado, até as relações do próprio cinema europeu ‘versus’ um ‘mainstream’ generalizado mas sobretudo o hollywoodesco, pobre, entre outros aspectos identitários da sua interpretação pessoal do mundo, que é traduzida imediatamente para o seu trabalho fílmico. Entretanto há este ponto incontornável: para tudo isto ser exatamente assim, Wenders tem sido um atento espectador, a percepcionar as mínimas e múltiplas subtilezas de todo o movimento orquestrado do seu universo, e sobretudo a observar o gesto de personagens e protagonistas e suas trajetórias trágicas ou cômicas nas problemáticas humanas. (Wenders confessou a releitura da Odisseia de Homero, junto do desenvolvimento de Paris, Texas.) Sob esta medida, sob o respeito assumido que tem aos mestres do seu cinema de eleição, sob a sua cinefilia particular, Wenders foi também personagem nos filmes que viu, refletiu o quanto destes filmes poderia reorganizar a sua vida e a de muitos outros espectadores, o quanto todos poderiam apreender deste cinema e transformar as suas próprias vidas práticas. Assim, sentimos a força das suas referências cinematográficas, constantemente e sem prejuízo das abordagens originais criada no seu cinema.
Em “Paris, Texas”, assistimos ao começo neste vazio, seja instaurador de um processo cognitivo inicial de aprendizagem até a potência de uma nova experiência como possibilidade para a reaprendizagem, que já é-nos familiar como material cinematográfico: seja em “L’ Enfant Sauvage” de François Truffaut ou na personagem de Kaspar Hauser, em Werner Herzog. Mas o processo criativo de escrita/reescrita é sempre complexo para o autor e, é às vezes, na azáfama pessoal e num pequeno canto vazio deste espaço criativo amplo que conseguimos encontrar silêncio para escrever: Wim admira Sam Shepard, Sam admira Wim Wenders. Conheceram-se nos estúdios Zoetrope, de Francis Ford Coppola na grande aventura de Wim Wenders em Hollywood: “Hammett” (1982), um filme ‘para esquecer’ segundo o próprio Wenders, mas com agradáveis consequências: “O Estado das Coisas” (1982) filmado a meio do caminho (e em Portugal) e “Paris, Texas”, todos acontecendo ao mesmo tempo, em trânsito, entre viagens necessárias neste enorme e adorável ‘desastre’ circunstancial. O filme vai ser todo rodado no Texas, que é como refere o próprio Sam Shepard: uma ‘América dos pequeninos’. O script está escrito em linhas gerais, exigindo o trabalho minucioso ‘on time’ desta co-autoria. Travis continua a sua viagem. E se continua é porque Wim Wenders é o realizador/autor constante desta personagem/protagonista em trânsito, em viagem: desde “Alice nas cidades” (1974) que ele mantém as suas personagens neste prisma hegeliano da viagem auto-restauradora de ordem e harmonia. Thomas Elsaesser, num texto sobre Wenders, cita uma passagem do filme “Reverse Angle” (1982), com o voice over do próprio realizador a testemunhar as suas próprias impressões neste mesmo prisma, neste desconforto/descobrimento proposto pelo próprio processo:
“Another night, arriving another airport, and coming from yet another city: for the first time in his life he was sick and tired of travelling. All cities had become one. Somehow he kept thinking of a book that he must have read as a child. All he remembered of it was this feeling of being lost…” That could be the beginning of another story or another film. Just cut to a close-up…
Travis reencontra o irmão. Sentimos, então, a economia narrativa, a cautela necessária para ser possível contar esta história à personagem e ao espectador, sem a utilização do exercício da memória: garantir que a escrita desta nova história faça o recobrimento da anterior para que Travis, em busca de expiação, possa permitir-se vivenciar a rara experiência (na vida mas também nas estruturas narrativas ficcionais contemporâneas) de poder recomeçar, reorganizar e regenerar o seu universo de relações e conflitos humanos, a fim de encerrar este ciclo da forma menos traumática possível, com mínimas porém verossimilhantes consequências. É a partir daqui, a pouco e pouco, que nos deparamos com o nosso objeto principal de investigação: a criação de personagem nesta tríplice construção:
1. Wenders/Shepard desenvolvem Travis, a sua personagem.
2. Travis desenvolve a construção de uma nova personagem, que possibilita uma solução ao conflito que ele próprio criou na diegese, e o espectador testemunha isto.
3. O espectador neste dispositivo ecrã-espelho vive esta contingência e cria mais uma das suas identidades narrativas, nesta vasta teia de histórias apropriadas para num trabalho de edição, que é o de refigurar, criar então a sua própria história: criar a sua própria história contada a partir de um universo de histórias apreendidas nesta unidade narrativa de vida.
O ecrã e o espelho são dispositivos de mediação no campo da subjetividade e na construção de identidades, e estão numa constante relação com o estatuto da própria representação: ambos terão na sua gênese, o mediador semiótico de uma representação do mundo: a janela. Através desta janela, olha-se para o ‘eu subjetivado’, já não na sua contingência vítrea de uma observação do mundo, objetivada, mas na gestão da sua opacidade até podermos ver o ‘eu’, o próprio a desenvolver um ‘outro’ neste espelho. “A reflexividade, sendo um retorno ao próprio, é também a sua duplicação, com todas as questões que esta pode levantar. O modelo e a cópia, o representado e o representante, o duplo são categorias às quais a reflexividade não é alheia. (BABO, 2019, p.111) Já, o ecrã tem as suas particularidades: terá a opacidade que permite a projeção mas que também transforma-se na transparência de poder olhar um outro no mundo, dentro do ecrã, nas suas progressões narrativas dentro da diegese. Aqui, então, abre-se a possibilidade de identificação com este outro: a assunção de que o reflexo é parcial neste dispositivo especular, e que o que vemos poderá completar-nos neste processo de subjetivação. Justificar-se-á então, aqui, este fenômeno a partir de dois pontos de vista distintos, mas que através do filme, circular, os torna concêntricos: num primeiro círculo, os assuntos sobre a identidade narrativa de Paul Ricoeur, desenvolvida a partir da sua investigação debruçada nos estudos sobre narrativa de “Temps et Récit”(1983-1985) e dos estudos e conceitos sobre o ‘si-mesmo’ na fase tardia de “Soi même comme une autre”, de 1990. Num segundo círculo, as projeções polimórficas de Edgar Morin, no seu ensaio sobre o cinema: “Le Cinéma ou l’Homme Imaginaire”, de 1956. Enquanto um coloca o espectador como co-autor, narrador e personagem das suas próprias histórias, o outro convida-nos a observar a nossa participação nestas histórias como elemento inspirador do carácter e do percurso ético nas nossas vidas em narrativa. Toda esta problemática serve-nos para integrar o tema a uma compreensão do mecanismo de ‘apropriação’, que também sendo um mecanismo de identificação, faz-nos regressar à questão da narrativização do carácter: “Na narrativa de ‘vida de que não sou autor’ quanto à existência, sou co-autor quanto ao sentido”. Mas a noção de co-autor conserva a de autor, mesmo na unidade narrativa de uma vida.” (MENDES, 2001, p.143)
Um deserto dentro do espelho.
Travis observa-se no deserto como quem se observa no espelho. O que ele vê é um deserto dentro do espelho, e o que lhe resta é vaguear sem rumo, a nos ‘aprisionar’ como espectadores dentro deste ambiente emocional árido e amplo. Mas é nesta imensidão hostil e com esta personagem penitente, que também nos deparamos com a sua obstinação. Travis, nesta enorme ambiguidade, está perdido sem estar: mais parece que já encontrou algo e persegue-o ininterruptamente. É nesta evocação de terra prometida, de terra amada, de um certo paraíso, fruto de um amor que não conseguiu concretizar, que ele ‘leva’ o seu deserto, portátil, nos ambientes iluminados a neon (verde) de Robby Müller, em fuga e em linhas diagonais que dividem os planos ao meio, suscitando re-visualizações do universo mítico do ‘western’ americano, como gênero fílmico mas até como referência histórica: o homem à procura da terra que será sua, espaço vazio para a construção da sua preciosa civilização. O seu silêncio somente acaba quando, neste ‘nada’ inaugural, Travis sussurra uma novidade promissora ao irmão: - “Paris! Quero ir a Paris!” Aqui, não Paris, França, mas sim Paris, Texas, pequena vila onde Travis comprou ainda casado com a sua mulher Jane, um pequeno lote vazio de terra. Um baldio. Onde ela quereria um dia, mais tarde, viver em família. O desejo de regressar a este lugar nesta viagem transformadora, redefinidora do seu interior, é o profundo desejo de voltar ao início e de refazer o que, outrora, foi malfeito na construção original desta união. Reconstruir assim, a partir das ruínas, ou eventualmente construir de raiz naquele terreno vazio, árido e empoeirado. Mas para isso, tudo deverá recomeçar com a recuperação do amor e da confiança de Hunter, o filho, que vive com o irmão e esposa em Los Angeles, onde foi ‘deixado’ nestes últimos quatro anos. Esta cidade sonhada onde tudo acontece ao longe, delicadamente, onde vemos somente os seus subúrbios de forma impessoal, onde a opção de Wenders é claramente não mostrar a cidade mas sim, um mero deserto habitado. É somente aqui, junto de Hunter, que Travis irá encontrar algo que preencherá este espaço vazio e o colocará novamente presente, a fazer parte de algo. Estamos em Hegel novamente: após atravessar este deserto, esta exigência interna de vida, esta profunda exigência de autodefinição, chega um momento de positividade que deve ser negado, para que surja desta sua negação, um novo nível mais elevado de compreensão e de conhecimento.
Uma personagem dentro do espelho.
Travis inicia um novo processo neste novo nível, agora com a presença do filho, dentro de um ambiente familiar caloroso que quer tê-lo como parte integrante, mas numa casa que não é a sua. Mesmo sendo a casa onde o filho viveu nos últimos 4 anos, após este abandono, esta experiência remete Travis para uma presença da família sonhada, não fosse o desabamento de tudo: Jane, Travis e a deriva dos dois, o abismo entre os dois. Contrapondo com isto, a casa com elementos ‘kitsch’ e a sempre opressora presença de um nível econômico mais alto, ‘snob’, típico do irmão que, sem maldade nenhuma, promove-se, gaba-se da sua provisória vitória na ‘luta declasses’, fazem Travis relembrar-se que já não quer mais nada que o possa agarrar materialmente. O esvaziamento naquele deserto põe-no na rota de uma certa religação identitária através da ipseidade: Travis quer observar o seu carácter e relembrar da sua promessa em pleno sentido ricoeuriano: o compromisso com a família original, com a origem de tudo ativa-se agora porque ela é pensada e adscrita como uma qualidade do ‘homem capaz’ . Prometer é tomar a iniciativa acerca do que se responsabilizou em fazer: resulta em ser responsável por outro, em proporcionar uma entrada à problemática do outro. A iniciativa como uma ação de sentido, presente em uma ordem simbólica. Do lado do falante em: ‘comprometer-se com’ e do lado do alocutário: ‘contar com’ a promessa feita. Wenders filma tudo isto com uma certa despretensão. Longe do dispositivo, e muito próximo do encantamento da criação e evolução desta personagem fascinante. Na sala, de uma forma quase didática, numa ideia delicada de reeducação, ou de exercício de (re)conhecimento, o irmão Walter promove uma projeção dos velhos footages Super 8 daquela família: vemos, num ecrã posto a meio da sala, os dois irmãos, respectivas mulheres e Hunter, projetados em momentos triviais, banais mas claramente, mágicos. Troca de olhares entre pai e filho indica um possível novo começo (Hunter era muito novo quando foi deixado com irmão de Travis) acompanhado de um desconforto constrangedor e triste da família que acolhe, que teme de forma inevitável, perder a presença de Hunter lá em casa. Mas é aqui, que naquele deserto começa a correr um pequeno ribeiro de ideias incontornáveis. É naquele primeiro ecrã (dentro do nosso ecrã) que surge o catalisador de todos estes elementos dentro de Travis. E é aqui que surge a ideia de Sam e Wim: a personagem dentro da personagem. O espelho que, a refletir outro espelho gera infinitos espelhos de possibilidades. Esta construção da personagem como estratégia será efetivamente a única forma possível que Travis terá para ‘reencontrar o caminho’ e voltar a encher aquele leito de rio que, seco, transformou-se no deserto inicial. Será por isso que na próxima manhã, Travis cirurgicamente irá criar uma nova identidade, uma personagem dentro de si, a aceitar a sua condição de destruidor e criador: destruiu a ruína daquilo que já não estava efetivamente construído, limpou e aplainou o seu, agora novo terreno e irá construir um novo universo, e uma nova personagem necessária para o desfecho da sua história: Sam e Wim possibilitam que Travis, esvaziado pelo seu próprio ritual de sacrifício, construa uma personagem dentro da personagem que já o é: um pai. E de uma forma narrativa muito bem realizada e construída por Wenders, é concebida uma das cenas mais emblemáticas e espirituosas do drama familiar no cinema: o corte de revistas, à procura de um modelo, de um signo. O aconselhamento da empregada hispânica da casa, que leva-o a um ‘regresso ao simples’, ao estereótipo (da novela mexicana?) mas com uma certa ironia: -”Queres ser um pai rico ou um pai pobre?”, pergunta ela, levando-nos novamente a ideia do material versus espiritual e as opções de Travis, no decorrer da sua vida e em confronto com as do irmão. Travis veste-se de pai, do arquétipo do pai, rico porventura, mas com opção para o humor: fica ainda mais evidente a potência deste falso, quando através da imagem e da representação surge um certo ‘desencaixe’. Mas a experiência leva Travis a recorrer rapidamente à natureza dentro de si. Ele, a ver o pai reconstruído artificialmente, vai encontrar o pai que definitivamente nunca o abandonou e que reaparece dentro da história, reorganizado e com uma confiança crescente no êxito desta estratégia. Para isso outra cena incrivelmente bem conseguida: o trajeto de Travis com o filho, da escola até a casa, passeios diferentes da rua, o filho ‘a brincar de ser’ (a imitar) a personagem que está dentro da personagem, filmada com o descortinar dos carros estacionados. É nesta cena de concretização do reencontro, que o filme prossegue agora e quer entrar numa fase final, aproximando-se do objetivo fulcral de Travis. Claro que tudo aqui envolve opções complexas na ação, mas é claramente o fluxo natural deste ribeiro que se transforma em rio e que já é imparável, sem contenção possível. Então, mais uma viagem, pai e filho ou dois investigadores, detetives particulares (outras personagens dentro das personagens) à procura de Jane, que segundo alguns escassos depósitos de uma conta a partir de um banco em Houston (como a pequena ajuda de Jane na educação de Hunter) denuncia-se no seu paradeiro e irá acabar por ser localizada pelos dois. Hunter com um walkie-talkie será assistente de Travis por entre blocos de betão no coração daquela cidade desértica e naquela estranha busca: a da sua própria mãe.
Um ecrã dentro de um ecrã.
É neste momento que nos deparamos com uma das mais bem conseguidas cenas do cinema contemporâneo. E não só: deparamos-nos ainda com a assombrosa importância do ecrã como elemento significante no discurso fílmico. Travis localizou Jane. Entrando num estranho estabelecimento onde supostamente ela trabalha, já a abordou como um anónimo, e agora, nesta segunda abordagem, começa cautelosamente a perceber como criará um canal de comunicação com a mulher, neste derradeiro encontro. A mulher que já amou e que provavelmente nunca deixará de amar. Travis tem, agora, uma importantíssima mensagem para ela. Wim Wenders sabe da importância desta cena final: ela definirá a potência da catarse final (para Travis, Jane e o espectador) e apresentar-nos-á os conflitos e tonalidades deste amor interrompido inexplicavelmente. Mas o que Wenders faz é absolutamente surpreendente: cria uma estrutura espacial, visual e narrativa que permite este último reencontro ser uma experiência ‘estonteante’ para o espectador, ao mesmo tempo que evoca uma série de conceitos narrativos, semióticos e linguísticos não somente disponíveis na linguagem cinematográfica, mas que aqui evocados, articulam um pensamento profundo do que é o cinema numa abordagem metalinguística através deste dispositivo precioso: o ecrã. Sem grande empenho plástico, sentimos visualmente a estranheza do estabelecimento: uma espécie de ‘peep show’ com pequenas cabines dispostas num grande salão, fechadas por cortinas. Travis entra, já conhece a cabine que procura, observa um ‘ecrã’ escuro que é uma janela para uma sala privada. Até então, um espelho onde vê a sua própria imagem refletida. E ele então, reflete. A luz da sala/janela/ecrã acende-se: vemos no mesmo dispositivo especular, Jane na sua personagem-fantasia, extrovertida e falante. Notem que, o que deixou de ser espelho ou janela, transforma-se em ecrã ainda a aludir ao retrato ou numa superfície pictórica onde a figuração não é diferente do que foram séculos de observação da beleza na pintura. Jane fala olhando para o outro lado do ecrã, como se falasse para uma câmara, independentemente do quê ou quem estará do outro lado. (Não é suposto ela ver o que está do outro lado, que sem luz, funciona como um estranho espelho também para ela, ou mesmo um ecrã de auto-observação) O único canal disponível é a voz dos intervenientes assistida por um microfone e um altifalante. O diálogo começa. Travis começa a observar o estranho ecrã. Jane está naquele misterioso ecrã, configurada numa outra estranha personagem, construída pelas suas compreensíveis razões profissionais. Nós, espectadores, vemos tudo aquilo no nosso ecrã (o do cinema), espantados. Admirados. Um ecrã dentro do ecrã. O mesmo Travis que viu noutro ecrã, num filme Super 8 há poucos dias atrás, Jane: daquela vez a sua Jane, linda, despojada e confiante no futuro. Por estas e outras razões, a imagem do ecrã, para ele, já não representa mais nada que não seja a absoluta verdade e que possa ser importante para a atual realidade representada. Jane deve ouvir desta vez, e ele, prefere virar-se de costas para o ecrã à procura somente do meio que necessita, naquele momento solene em busca da verdade. Uma vez livre do ecrã (encantatório, ilusório, causador de torpor), Travis começa a contar-lhe a sua história. Quando a história chega num certo grau de verossimilhança com a suaprópria vida de anos atrás, Jane transfigura-se e Wim Wenders também: ele faz o primeiro contra-plano daquela estranha relação axial. Sem vermos referência desfocada à esquerda, (típica de um cinema clássico) vemos Jane, refletida no ecrã-espelho, impávida e comovida, como se estivesse dentro daquele ecrã, mas agora, também, a ser observada através de um espelho, improvável, privado, exclusivo: o dispositivo estava lá mas não servia para mostrar aquilo que estava dentro dela. E o espectador presencia este jogo de ecrãs-espelhos através das duas vias. O som é muito importante aqui também: sofre um corte para um outro som ambiente qualquer: o de um ar condicionado ou máquina qualquer: um típico som de bastidor. Mas é aqui que vemos Jane no ‘presente’ deste tempo fílmico pela primeira vez. Jane, ela própria. Ali, agora. E esta presença tão esperada, também nos comove, nos ‘desarma’. Subitamente, ela, corajosa, pede uma interrupção no funcionamento deste dispositivo que tinha como propósito isolar cada uma das personagens. Capturados e presos nos seus respectivos ecrãs, ela sugere que com a luz (novamente, a luz) ele torne-se mais visível. É neste momento que ocorre uma especial e estranha coincidência de rostos sobrepostos, máscaras, de um dos lados do ecrã: e só poderia ser o de Travis, que é o gerador desta transformação, desta ação restauradora. O ecrã, então, a partir daqui deixa de existir. Transforma-se num elemento metafórico da ‘impossibilidade’. Do ‘inacessível’, que transparece mas também reflete. Desliga-se portanto. Travis deixa-a ali, com o altifalante na mão, a refletir, não mais em superfícies, ecrãs ou espelhos, anos de vida, em paz, serena. Ele acaba de promover-lhe também o fecho de um ciclo, permitindo-lhe sentir, de alguma forma, uma certa purificação através desta catarse, até porque estará prestes a reconciliar-se com o seu filho, e a retomar o seu papel fulcral de mãe, na sua vida.Travis e Jane preparam o seu novo futuro após esta aventura espiritual que modificou profundamente espírito e razão desta união familiar, de forma que jamais poderá haver uma coincidência entre o antes e o agora: mãe e filho unir-se-ão novamente. Travis regressa para a sua viagem, que afinal ainda não acabou. Uma viagem longa e que, por agora, traz uma regeneradora consciência de missão cumprida. Regressará para um outro deserto, este feito de viadutos e auto-estradas: na arquitetura desértica destas cidades do interior norte-americano. Wim Wenders deixa ficar várias marcas claras com este ‘Paris, Texas’: um exercício eficaz na economia do dispositivo cinematográfico, um espaço para um storytelling autêntico, feito com a alquimia de dois autores atentos e na dramaturgia dos espaços e no desempenho das suas personagens. A sua capacidade de construir uma imagem onde os campos, sensorial e emocional coincidem, mas construídos sem sobreposição: encaixam-se nesta confluência de ecrãs, janelas e espelhos, linhas e espaços orgânicos de cada um dos seus elementos.
Travis ou o espectador dentro do ecrã-espelho.
Neste âmbito, a obra de Paul Ricoeur parece nos dar uma chave valiosa para a abertura desta complexa teia de relações no processo de subjetivação do leitor/ espectador diante da obra literária/cinematográfica. Ricoeur diz-nos que a reconciliação entre identidade e diversidade só pode ser feita na ‘dialética interna da personagem, contrapartida de ‘mise en intrigue’, ou seja, na sua tradução em intriga, trama ou plot. A unicidade da totalidade de histórias de vida é constantemente ameaçada pelos acontecimentos imprevisíveis que as pontuam, o que Paul Ricoeur chama de ‘concordância discordante’: uma característica de toda a narrativa e de todas as identidades narrativas. Ricoeur descreve esta totalidade como a ‘síntese do heterogêneo’: a contingência de um acontecimento contribui para a necessidade, de algum modo retroativa, da história de vida, a qual se iguala à identidade da personagem. Por isso, aqui, o acaso (hasard) é transmutado em destino (destin). Aqui, na resolução do conflito inicial de Travis, ele vive a relação dialética entre o pai e homem de família, que deve abdicar de ser e sacrificar-se da sua presença nesta futura organização, promovendo a inserção do filho Hunter, neste seu antigo papel de moderador, agora de mensageiro deste novo início. Aqui, colocar o filho Hun-ter numa recriação da sua própria personagem, como o homem, que deverá amar Jane, a sua mãe, é para alguns, a derradeira fantasia edipiana de Travis no culminar desta nova reunião social. Segundo Ricoeur, no contar a história, o sujeito envolve- -se com a sua dialética ipseidade-mesmidade, que transporta o plano da ação para o plano da condição narrativa: a sua própria identidade narrada por si, sendo este simultaneamente narrador e construtor da sua própria intriga. No universo das proposições, tão interessantes nos estudos de Paul Ricoeur, aqui fica uma, em que a identidade é ação, intriga e, que também vislumbra a ética:
Quem sou eu para que, seja quem possa ser, aqui esteja sem poder fazer de outro modo, mas conseguindo reunir-me e apropriar-me de mim próprio?
A identidade da personagem, ao longo da história que conta é assegurada exactamente pelo facto de ser ela a contá- la, e de esta ação encerrar em si, um poder unificador. Travis, segundo carácter e promessa, na ipseidade, é claramente dotado deste poder, impelido a resolver o conflito gerado pelos seus erros no passado: os incontornáveis ciúmes que sentia por Jane, a autodestruição nos vícios e no álcool e o necessário afastamento que culmina, subitamente, na fuga de Jane. O espectador recebe o sacrifício de Travis como auto-penitência e compreende, como ele, as leis de ação e reação, absolvendo Jane de qualquer incapacidade relacional e a aceitar a sua nova condição como uma nova oportunidade: a nova vida com Hunter numa nova relação com a verdade da sua identidade, sem novas personagens, a se libertar do ecrã, da janela fantasiosa e a regressar para aquilo que foi visto no seu reflexo, no espelho. É esta a história que Jane acaba de contar a si própria. Nas palavras de Ricoeur acerca dos conceitos de refiguração, na sua tripla mimese: “A história de uma vida não cessa de ser refigurada por todas as histórias fictícias (ficcionais) ou verídicas que um sujeito conta sobre si próprio. (RICOEUR, 1997, p. 425, 428) Entretanto, décadas antes dos estudos de Paul Ricoeur, o antropólogo Edgar Morin já trabalhava com as capacidades do cinema como mediador de histórias apreendidas pelo ser e através dos seus conceitos de projeções-identificações polimórficas, já nos permitia compreender a identificação: o espectador vive intensamente a diegese como se fosse uma das personagens participantes. Ou outro conceito: o da adesão: o espectador, que mesmo sem se identificar com qualquer personagem, vive todo o ambiente e todas as situações da obra com alta intensidade emocional. (MORIN, 1980, p.81). Todo o movimento das personagens de Paris, Texas é um regresso ao gesto natural das suas vidas em sociedade, e num caminho de abandono deste mise en abyme familiar de Sam Shepard. O desastre nas vidas de Travis, Jane e Hunter é-nos mostrado como condição para fazer-se parte deste jogo estrutural. Neste âmbito, identifico esta possibilidade emocional no espectador diante do filme: a identificação ou a adesão com o desafio de Travis em repor a harmonia que ele próprio quebrou, nos conflitos humanos da sua vida. Aqui, a resolução através deste sacrifício somente aumenta a potência e intensidade do conflito na sua resolução, e por consequência, a densidade emocional da leitura por parte do espectador.Nesta mesma obra, Morin apura este conceito salientando a ‘participação afetiva’: que as emoções num determinado grau podem converter-se em magia, na compreensão subjetiva do espectador. “A vida subjetiva, a alma íntima, por um lado, e a alienação, a alma animista, por outro, polarizam as participações afetivas embora estas possam englobar, diversamente, tanto umas como outras. Dissemos nós que a magia não se deixa reabsorver inteiramente pela alma, e que esta é, por si própria, um resíduo semi fluido, semi-reificado da magia.” (MORIN, 1980. p.85) Edgar Morin crê que a visão subjetiva, ativa na absorção da experiência fílmica por parte do espectador, é uma visão mágica no seu estado primordial. Após um exímio trabalho de criação de empatia por cada personagem de Paris, Texas, o espectador está imerso nesta condição de subjetividade. O acaso que transformou-se em destino aqui, irá ainda se transformar em algo novo: o sacrifício de Travis é possibilitador de um elemento mágico, de uma capacidade sobre-humana, tornando possível uma intervenção positiva sobre a relação humana, na aplicação de uma condição restauradora benigna, na família ativa que resta em Jane e Hunter. Ainda sobre o poder mítico do sacrifício, e já no âmbito prático do seu pensamento filosófico, mas também artístico e fílmico, Andrei Tarkovsky apresentou-nos a sua bem conhecida ideia sobre o papel funcional da arte e, que reconhecerá mais tarde, do seu próprio cinema: “Só o confronto com a dor, com este ‘pathos’ mais profundo, permite o contraste purificador da catarse. O indiscutível papel funcional da arte reside na ideia de saber, onde o efeito se exprime como choque, como catarse.” (TARKOVSKY, 1990. p. 38) Nas relações do público com o cinema, tanto na obra de Tarkovsky como na de muitos realizadores contemporâneos destes últimos 40 anos, podemos observar a busca incessante do espectador nesta identificação, nesta apreensão de tramas e resoluções, com a procura de respostas às indagações do herói que visam libertá-lo de um elemento narrativo aprisionador, dando assim a resolução necessária ao conflito, o ‘motor’ da sua progressão. Certamente que é também no cinema, que o ser contemporâneo vai buscar estas variações imaginativas e elementos narrativos clássicos comparáveis aos da literatura para a configuração das suas próprias histórias, que posteriormente serão mescladas com o fator acontecimental: o ‘destino’ de cada um de nós, incontornável, e que, posto em intriga, trama, será visto, sentido, identificado, aderido pelo espectador. Mas no caso de Paris, Texas, o controlo deste transfert entre personagem e espectador é feito a partir de tantos layers, em tantas compreensões e identificações possíveis: é através deste ‘road movie como a vida é’, onde a viagem é sempre um momento de esclarecimento espiritual e não um simples transferir-se de um lugar para outro que, através de uma temporalidade construtiva, vive-se esta experiência auto-conscientizadora e enriquecedora. Paris, Texas é esta história sobre a transcendência da perda, onde a auto-omissão de Travis no desfecho é a forma mais honesta de aceitar a transformação. E é, assim, na postura ética de Travis, na sua capacidade reconciliadora e na sua humildade na compreensão e cumprimento do seu próprio sacrifício que o espectador se revê, e procura também nesta experiência, uma certa auto-regeneração.Fica aqui, por fim, uma citação do próprio Wenders no célebre Le Souffle de l’ange, para a Cahiers du Cinema nº 400, acerca do quão surpreendente e saboroso foi trabalhar a personagem de e em Travis, mas quanto do conceito de identidade narrativa existe também no autor, como mecanismo ativo de criação: “O último plano de Paris, Texas, quando Travis vai-se embora: deixei-o desaparecer à minha maneira, e com ele foram todas as minhas figuras masculinas anteriores. Agora estão todas instaladas num asilo para idosos, nos subúrbios de Paris, no Texas. “
Referências Bibliográficas:
AURETTA, C. D. (2018). Cinegramas | Entre a escrita e o ecrã. Edições Colibri.
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