“A imagem em convulsão”: “TERRA EM TRANSE”, de Glauber Rocha. [1967 | 1h55’ | BR]

Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, é cinema em estado febril. Um gesto radical que rompe com a narrativa convencional e nos arremessa para o excesso da alegoria, onde política e delírio se fundem.

Aqui, a imagem já não organiza: ela treme, ela explode. O real e o onírico colidem sem aviso. A câmara não explica, ela grita. Glauber convoca-nos a pensar: o que é uma imagem quando ela já não cabe no discurso? Quando se torna convulsão, insurreição, crise?

Este é o cinema que queima. O cinema que pensa com o corpo. O cinema que desestabiliza o olhar.
Glauber opera com a imagem como crise do real. Ela não imita, mas denuncia, distorce, transfigura. É o próprio corpo do real que treme.


Terra em Transe
não explica o Brasil, encarna-o.
A imagem torna-se metáfora viva da contradição política e do colapso simbólico. A câmara não observa: participa. A imagem é presença agressiva — como dizia Flusser, “um gesto que pensa com o corpo”.

Ao misturar teatro, épico e política, Glauber questiona: qual é a verdade da imagem? A encenação revela mais do que o documento. Paulo Martins, o poeta-revolucionário, é o portador dessa verdade em fratura — dividido entre ação e contemplação, poder e arte. A verdade emerge do choque — Eisenstein via isso como “montagem de atrações”. Glauber adiciona o transe.

O tempo como espiral de ruína: não há tempo linear: o filme move-se entre passado, presente e premonição. É uma memória em combustão, não uma cronologia.
El Dorado e seus políticos são imagens compostas do Brasil: arcaico e moderno, tropical e fascista. A morte de Paulo Martins é o colapso da utopia — e o nascimento de um novo imaginário.

A imagem como evocação do sagrado político: há rituais, palácios, possessões. Glauber não mostra o real visível, mas o invisível das forças — históricas, míticas, inconscientes.
O povo é presença simbólica, quase abstrata. Está sempre evocado, mas raramente mostrado em corpo.
O invisível está na voz, no grito, no excesso. A imagem ultrapassa os limites do discurso.

O corpo em estado de insurreição: os corpos em Terra em Transe não são naturais: são performáticos, violentados, ritualizados — teatros de dor e desejo. “O corpo não é coisa visível: é condição do visível.” — diz Maurice Merleau-Ponty em “O Olho e o Espírito”.

A narrativa de Paulo é atravessada por pontos de vista quebrados. O olhar é ao mesmo tempo poético, político e paranoico. O rosto de Paulo, suado, desesperado, furioso, concentra o colapso de um país. Um rosto que pensa e sofre.

A imagem como denúncia e como falha: Glauber não tenta ensinar, mas provocar. A imagem é imperfeita, nervosa, cortada — como o país que ela quer retratar. “As imagens têm o dever de se comprometer com aquilo que não se deixa representar.” — diz Judith Butler em “Quadros de Guerra”.

Paulo está entre o artista e o militante — imagem viva da dúvida ética da arte engajada.
A estética da fome e da raiva: a violência formal é política. Glauber defendia uma estética que ferisse o espectador — uma imagem que não se consumisse, mas se cuspisse.

Técnica como expressão do delírio político: movimentos bruscos de câmara, zooms, cortes, sobreposições — tudo desestabiliza. A imagem não conforta: desequilibra. Glauber desmonta a unidade clássica. O corte é sangramento. A imagem é uma flecha lançada no tumulto. “O que pensa na imagem não é o conteúdo, mas a montagem.” — diz Gilles Deleuze em “Cinema I: A Imagem-Movimento”.
O uso do som (gritos, ecos, música interrompida) constrói um espaço alucinatório. A imagem vibra em camadas sensoriais.

Terra em Transe enfrentou graves problemas com a censura militar. Logo após a conclusão, o filme foi proibido de circular no Brasil, acusado de ser subversivo e de promover a desordem ideológica. Glauber chegou a declarar que o filme tinha sido censurado porque “mostrava o Brasil de forma que o Brasil não queria ver.”

A pressão de intelectuais e cineastas fez com que o filme fosse liberado pouco tempo depois, mas a sua circulação permaneceu vigiada. Quando exibido no Festival de Cannes, Terra em Transe foi ovacionado e contribuiu decisivamente para consolidar Glauber Rocha como um dos nomes centrais do Cinema Novo Brasileiro e um dos realizadores mais inovadores do mundo.
O público brasileiro, à época, reagiu de forma dividida: muitos não compreenderam a estrutura caótica e simbólica, outros sentiram-se profundamente tocados pela potência visual e poética. O filme tornou-se rapidamente um objeto de culto e um ponto de referência obrigatória para o cinema político.

Terra em Transe é hoje reconhecido como uma das obras-primas do cinema mundial. A sua estética revolucionária influenciou cineastas no Brasil e fora dele, abrindo caminho para uma nova linguagem cinematográfica: um cinema que pensa com imagens febris, em estado de conflito.
O conceito de “estética da fome” que Glauber teorizou ganha aqui um desdobramento prático: a fome não só como tema, mas como forma — a imagem imperfeita, crua, violenta.

E além da estética, o filme continua a ser um dos retratos mais poderosos da angústia do intelectual diante da falência das utopias.

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