O Plano-Sequência: a reinvenção do tempo através da linguagem do cinema

O plano-sequência, uma das formas mais fascinantes da gramática cinematográfica, consiste na manutenção de um plano sem cortes ao longo de uma cena ou mesmo de todo um filme. Essa técnica, além de um desafio técnico e estético, é um instrumento de reconfiguração da experiência do tempo e do espaço no cinema. Enquanto a montagem tradicional fragmenta e reconstrói a cronologia dos eventos, o plano-sequência propõe uma experiência contínua, onde tempo diegético e tempo real se tornam um só, dissolvendo as fronteiras entre representação, vivência e experiência

Pier Paolo Pasolini (1922 - 1975) foi um dos cineastas e teóricos que mais aprofundaram a relação entre o tempo cinematográfico e a experiência real. No seu texto "O Cinema de Poesia", ele argumentava que o cinema deveria abandonar a sintaxe clássica da montagem narrativa e adotar um modo de escrita que se aproxima do fluxo da realidade, tornando assim o plano-sequência como uma escolha natural para a sua visão poética do mundo. Para Pasolini, o plano-sequência não era apenas um artifício técnico, mas um instrumento de captação do real na sua forma mais pura, onde o espectador se torna um observador ativo da passagem do tempo.
Nos seus filmes, como O Evangelho Segundo São Mateus (1964) e Teorema (1968), encontramos planos-sequência que não apenas reforçam a ideia do realismo bruto, mas também evocam um estado de hipnose, onde o espectador é forçado a confrontar a realidade como se estivesse presente dentro da cena. Esse efeito hipnótico advém da ausência de cortes, que nos obriga a percorrer o tempo junto às personagens, sem a intervenção direta do cineasta ou do dispositivo cinematográfico.

O efeito hipnótico do plano-sequência é amplamente discutido por diversos cineastas e teóricos. Andrei Tarkovsky (1932 - 1986), por exemplo, no seu livro "Esculpir o Tempo", argumenta que a continuidade temporal e a duração dos planos são essenciais para criar uma experiência sensorial profunda, onde o espectador é absorvido pelo fluxo ininterrupto do tempo. Filósofos como Gilles Deleuze (1925 - 1995) também identificaram o plano-sequência como uma forma de tempo-imagem, na qual o cinema abandona a narrativa causal e passa a apresentar o tempo como algo diretamente visível e sensorial.

O cinema contemporâneo frequentemente utiliza essa técnica para aprofundar a imersão do espectador. Filmmakers como Béla Tarr (Sátántangó, 1994) e Alfonso Cuarón (Children of Men, 2006) exploram longos planos sem cortes para gerar um estado de atenção ampliada, onde cada instante se torna palpável, cada ação é vivida em tempo real, e a montagem deixa de interferir na perceção da duração.

No cinema convencional, a montagem pode manipular a perceção temporal, comprimindo horas em minutos ou dilatando segundos em cenas extensas. O plano-sequência gera aproximação documental – Como em Roma, Cidade Aberta (1945), de Rossellini, onde a continuidade do plano reforça a autenticidade dos eventos. Gera uma experiência sensorial e contemplativa – Como em Stalker (1979), de Tarkovsky, onde longos planos criam uma sensação de suspensão do tempo. Pode gerar angústia e imersão – Como em Victoria (2015), de Sebastian Schipper, filmado num único plano-sequência de 138 minutos, intensificando a sensação de realismo e urgência.

O plano-sequência é uma das formas mais poderosas do cinema porque desafia a montagem clássica e cria uma nova relação entre tempo, espaço e narrativa, obrigando-nos, espectadores, a viver no tempo da imagem – um tempo que não pode ser editado ou fragmentado, mas apenas experienciado.

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The Long Take: Reinventing Time Through the Language of Cinema

The long take, one of the most fascinating forms of cinematic grammar, consists of maintaining a shot without cuts throughout a scene—or even an entire film. This technique, beyond being a technical and aesthetic challenge, is a tool for reconfiguring the experience of time and space in cinema. While traditional editing fragments and reconstructs the chronology of events, the long take offers a continuous experience in which diegetic time and real time become one, dissolving the boundaries between representation, experience, and perception.

Pier Paolo Pasolini (1922–1975) was one of the filmmakers and theorists who most deeply explored the relationship between cinematic time and lived experience. In his essay “The Cinema of Poetry”, he argued that cinema should abandon the classical syntax of narrative editing and adopt a mode of writing that mirrors the flow of reality. For Pasolini, the long take was not merely a technical device, but a means of capturing the real in its purest form, where the viewer becomes an active observer of time’s passage.

In his films, such as The Gospel According to St. Matthew (1964) and Teorema (1968), we find long takes that not only reinforce a sense of raw realism, but also evoke a hypnotic state in which the viewer is compelled to confront reality as though present within the scene itself. This hypnotic effect arises from the absence of cuts, forcing us to travel through time alongside the characters, without the filmmaker’s direct intervention.

The hypnotic quality of the long take has been widely discussed by filmmakers and theorists alike. Andrei Tarkovsky (1932–1986), for example, in his book Sculpting in Time, argues that temporal continuity and shot duration are essential for creating a deep sensorial experience, in which the viewer is absorbed by the uninterrupted flow of time. Philosophers such as Gilles Deleuze (1925–1995) also identified the long take as a form of the time-image, where cinema abandons causal narrative and begins to present time as something directly visible and sensorial.

Contemporary cinema often uses this technique to heighten viewer immersion. Filmmakers such as Béla Tarr (Sátántangó, 1994) and Alfonso Cuarón (Children of Men, 2006) explore extended shots without cuts to generate an expanded state of attention, where every moment becomes tangible, every action is lived in real time, and editing no longer interferes with our perception of duration.

In conventional cinema, editing manipulates temporal perception, compressing hours into minutes or stretching seconds into extended scenes. The long take, however, can create a documentary-like immediacy—as in Rome, Open City (1945) by Rossellini, where the continuity of the shot enhances the authenticity of the events.

It can evoke a sensory and contemplative experience—as in Stalker (1979) by Tarkovsky, where long takes suspend time itself.

It can produce anxiety and immersion—as in Victoria (2015) by Sebastian Schipper, filmed in a single 138-minute long take, intensifying the sense of realism and urgency.

In short, the long take is one of cinema’s most powerful forms because it challenges classical editing and creates a new relationship between time, space, and narrative, compelling us to live within the time of the image—a time that cannot be edited or fragmented, but only experienced.

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