OS RITUAIS DO CINEMA: Como personagem e espectador se relacionam nas narrativas do cinema contemporâneo?
A evocar os “Rituais do Cinema”, sugerimos uma orientação do olhar para as relações entre narrativa, personagem, espectador e este espaço até hoje conhecido por ‘sala de cinema’ que, embora encontre-se em ruptura e desconstrução profundas, deixou a sua marca inequívoca no conhecimento humano acerca da prática de recepção de um filme. Sugerimos também que estas relações sejam observadas em cruzamento com um eixo central: o conceito de ritual e os seus atributos de prática de subjetivação do ser diante de uma necessidade de transformação que visa o seu desenvolvimento e que traz-lhe ferramentas para “a resolução dos seus conflitos internos, pessoais e extrapessoais” [MCKEE, 1998: 146], trazendo assim, fluência à compreensão e busca de um sentido neste exercício de ser-no-mundo(1).
O cinema, neste ensaio, é ativado como um dispositivo, narrativo, de reflexão, de “reconfiguração do sujeito, que permite a criação de uma estrutura conferida ao eu e que o transforma no ‘si-mesmo’ de Ricoeur” [BABO, 2015: 5], como veremos mais à frente. O mecanismo narrativo usado por este dispositivo é conferido aqui ao ritual, um ritual simbólico quotidiano com fins de transformação positiva do ser, seja ele dissimulado, desenhado objetivamente, seja ele realizado pela personagem na progressão do plot e transferido através de formas de adesão ou participação do espectador, seja ele realizado pelo espectador diretamente, aquando da sua entrada na sala de cinema – tangível – ou naquela que tem sido recriada e projetada na sua própria sala de estar ou outro espaço pessoal ou comunitário disponível.
Diante de uma certa banalização dos ecrãs presentes na nossa vida quotidiana, é também de salientar que parece essencial uma observação cuidada sobre este acervo, quase infinito, de uma variedade de conteúdos fílmicos e narrativos que se encontram agora e cada vez mais disponíveis, acessíveis e passíveis de uma simples escolha a partir do controlo remoto de uma televisão. Por entre estes títulos, estão as histórias do cinema contemporâneo, independente da sua adaptação, caracterização económica de produção ou eventual objetivo normativo: este story-shaped world, que é um mundo detentor de um enorme arquivo de histórias da humanidade, uma complexa coleção de narrativas humanas sobre as suas aventuras, desventuras, buscas e compreensões das resoluções para os conflitos observados meticulosamente na existência humana.
Como refere Byung-Chul Han, assistimos a uma CRISE DA NARRAÇÃO onde os antigos mitos, símbolos e sistemas de crença vão sendo questionados, esvaziados ou reformulados. A narrativa deixou de nos transformar para nos vender. O storytelling tornou-se ‘storyselling’, e os ecrãs, outrora portais para o simbólico, são hoje muitas vezes usados como montras de distração e performance. No entanto, o cinema permanece, mesmo que em mutação, como uma das últimas grandes máquinas de ritualização coletiva e ativação do mito. As suas durações contrastam com o minuto efémero de um ‘story’ do Instagram. Os mitos exigem tempo, exigem travessia, exigem uma sala (escura, simbólica, real ou imaginada): esta sala onde essa transformação possa operar-se.
Todo este cruzamento de relações das histórias transmitidas através do visionamento de filmes nos dias de hoje abre-nos um enorme campo potencial de possibilidades desta prática ritual: o espectador, depois de uma escolha esmerada, apurada, submete-se a este ‘santuário’ e a esta ‘oração’, de criação de um novo vínculo afetivo, de atenção, de ativação e submissão imersiva na crença em uma determinada história. Mas desta vez, a apreensão desta história é feita a partir de uma duração muito mais curta do que a literatura nos propôs durante séculos, e muito mais próxima da duração dos rituais ancestrais e antropológicos estudados pela humanidade. Com uma duração possível de ser absorvida no processo produtivo do ser e no seu quotidiano, num tempo delimitado que oscila entre os 90’ e os 200’’ — uma duração imersiva que, muitas vezes, se aproxima dos rituais ancestrais, iniciáticos, ou os religiosos mais próximos do contemporâneo, o espectador, neste vínculo de compromisso eventual com a personagem, participa intensamente, permitindo-se uma prática quase terapêutica de busca pessoal de conhecimento (e até de autoconhecimento ou auto-reconhecimento) que visa fins práticos e imediatos para a sua progressão de vida nas suas relações éticas, sociais e emocionais com o si mesmo e com o outro.
Na prática destes rituais simbólicos quotidianos, o enquadramento holístico revela-se essencial. Esses rituais, dissimulados na experiência humana, visam o desenvolvimento, o seu ‘empoderamento’(2) ou seja, a obtenção, aumento ou fortalecimento de um poder, seja ele humano ou até mesmo aplicado aqui, sobre-humano.
Este ‘si-mesmo como um outro’ e as histórias que contamos para nós próprios são princípio básico para o nosso empoderamento. Livramos-nos da hegemónia da psicanálise nos 90s aceitando esta abertura para estudos culturas, cognitivos, ciências sociais, e estudos da experiência.
O caráter holístico emerge ao considerar a conexão intrínseca entre os aspectos físicos, emocionais e mentais do indivíduo, assim como o contexto social e espiritual em que essas práticas são realizadas. Ao abranger todas essas dimensões, o enfoque holístico compreende a interdependência entre o indivíduo e a narrativa da história, tornando possível uma compreensão mais profunda do significado e impacto desses rituais na vida quotidiana: empoderamos-nos quando abrimos este diálogo dentro de nós: um filme é um excelente elemento ativo de grandes diálogos.
Os rituais são práticas ancestrais da humanidade que plasmam esta infinidade de relações do ser no seu espaço, subjetivo ou da sociedade em que se insere. Os rituais, neste cruzamento com as narrativas, põem-nos através dos ritos diante dos mitos e fornecem estrutura e significado para nossas vidas. Ambos apelam para as emoções e ambos criam mundos em diferentes níveis de realidades que encantam estes participantes de histórias há milhares de anos. É verdade que no mundo contemporâneo e após uma clara crise do simbólico, esta prática de cruzamento tem ganho ênfase teórica e prática nas últimas décadas: velhos e novos rituais parecem estar mais omnipresentes do que nunca, desenvolvendo uma ampla gama de formas e instâncias de ritual design, até mesmo no mundo virtual da internet.
É também com esta prática, independentemente do seu narrador ou do seu medium, que estas histórias, efêmeras ou fulcrais, se apresentam como os grandes transportadores dos nossos mitos e convidam-nos à um exercício imanente ou transcendente do ser: a busca de um poder mágico, sobre-humano, para a resolução do conflito: “não nos separamos das narrativas porque são elas que produzem e continuarão a produzir os sentidos deste story-shaped world e da experiência.” [MENDES, 2001: 82-83] Ananda Coomaraswamy (1877 - 1947) nos lembra que o mito é realmente "o mais próximo da verdade absoluta que pode ser expresso em palavras". A ideia de que o mito como linguagem carrega a consciência da humanidade no transporte da informação textual e simbólica pode ser, segundo muitos, a exata vocação do cinema. Ou Northrop Frye (1912 - 1991): "o pensamento mitológico não pode ser substituído, porque forma a estrutura e o contexto para todo pensamento". [FRYE, 1990: xvi] Aqui estaremos a enquadrar o cinema como o mais potente emissor de uma mensagem cuja recepção é feita através de diferentes layers, canais ou dimensões sensoriais e eventualmente emocionais, onde poderíamos sugerir: a) a informação textual do storyscape: esta paisagem nocional constituída de histórias ou narrativas e de quem a habita: a personagem ou outros possíveis discursos: narrador ou contador da história; b) o plot com toda a sua distensão temporal: character background, tempo presente e toda uma perspectiva de promessa e futuro; c) música como elemento sensorial de elevada importância para a ligação empática, emocional e afetiva do espectador, ou até como gerador de estranheza: outra ferramenta decisiva para a ligação profunda entre história e espectador se criar; d) sons ambientes como regulador de vínculo com a realidade ou destacá-lo então noutras funções: distorcer este vínculo, tornando-o elemento simbólico de contraposição; e) construção gráfica, como potenciador relevante de uma transgressão do tempo diegético. Aqui a possibilidade de criação de um zeitgeist próprio e que amplia e transforma a capacidade de significação de certos elementos de uma história. É a partir da eficácia deste dispositivo que nos é permitido fazer a correta aproximação aos mitos e as histórias arquetipais, em nome do que foi registado desde o dia zero da humanidade e que são e têm sido replicadas exponencialmente ao longo de milénios: a potência do rito como uma evocação do mito e da sua força restauradora, transformadora que visa uma compreensão ampla físico-espiritual de dupla via, em imanência ou transcendência, a partir do background sensorial e intelectual do indivíduo. A participação do espectador no cinema é a sua participação no mito. Na Índia, um país com enorme riqueza de práticas religiosas, o cinema é uma das maiores indústrias, atraindo diariamente milhões de pessoas para seus milhares de santuários cinematográficos (até mesmo espectadores desempregados que estão presentes durante as matinês). Os "palácios dos sonhos" do grande cinema americano da década de (19)20, eram como templos e catedrais contemporâneos repletos de adornos e elegância cerimonial no seu design. Como nota, Geoffrey Hill (1932 - 2016) no seu “Illuminating Shadows. The Mythic Power of the Film”(1992): “o cinema tornou-se para o mundo moderno, a catedral coletiva da mística e da participação primitiva: é a casa dos sonhos tribais da civilização moderna.” [HILL, 1992: 3] A consciência humana através do sonho, do mito e da religião utiliza um sistema criativo e artístico para aceder, compilar e organizar a sua gênese: das antigas pinturas rupestres como ato ritual de projeção para a manifestação de magia (no seu amplo sentido antropológico) e da vontade humana à arte contemporânea com a sua potência (re)significante, a arte (com as suas obras) sempre serviu a sua cultura como containers de mitos. Ezra Pound (1885 - 1972) pensava no artista como ‘a antena da raça’ ao citar uma frase de McLuhan: “o artista sempre mostrou conhecer fenômenos dos quais muitos outros desconhecem.” Ou como também disse Aldous Huxley (1894 - 1963): "A percepção do artista não se limita ao que é biologicamente ou socialmente útil". [HUXLEY, 2019: 33] O cineasta alemão Werner Herzog (1942 - ), em “BURDEN OF DREAMS” (1982), o filme sobre a realização de seu “FITZCARRALDO” (1982), nos relembra que a única diferença entre ele próprio e o outro é que ele filma, imprime com luz os seus próprios sonhos. Quando a psicanálise freudiana tradicional olhava para a arte como sintoma de uma doença, Carl G. Jung (1875 - 1961) dizia: "Se uma obra de arte é explicada da mesma forma que uma neurose, então ou a obra de arte é uma neurose ou uma neurose é uma obra de arte" [JUNG, 1966: 67]. “O artista é aquele que carrega a histórica chama mítica que ilumina todas as gerações e garante a participação do in illo tempore” [ELIADE, 1991: 20], ou o tempo sagrado, como delineado por Mircea Eliade (1907 - 1986) , ou ainda novamente por Northrop Frye, que relaciona o artista como criador de mitos; "Toda sociedade é a personificação de um mito, e como o artista é o modelador do mito, ele segura em suas mãos os raios que destroem uma sociedade e criam outra" [FRYE, 1963: 147]. Mas independentemente dos níveis de verossimilhança de uma eventual história, modelação de um mito, da sua relação com a realidade e o quotidiano, ou da sua pertença a mundos possíveis, o espectador deve ser um participante ativo e há inúmeros conceitos amplamente estudados sobre esta participação. Neste estudo iremos fazer uma abordagem que se pretende o mais atual possível sobre algumas abordagens teóricas, hermenêuticas ou mesmo filosóficas destes possíveis mecanismos de participação delineados por alguns pensadores e investigadores da alma humana: Henri Bergson (1859 - 1941) e esta capacidade notável do ser humano de efabular e criar a partir da intuição humana; Paul Ricoeur (1913 - 2005) e as questões do si-mesmo e a sua identidade narrativa; Edgar Morin (1921 - ) e a criação de um discurso que tenta ultrapassar a visão reducionista e simplista do homem no seu mundo, e que tenta também, ultrapassar a sua banalidade física, pondo-o em busca da alma ou da magia, são alguns destes exemplos. Com os seus conceitos de projeções-identificações polimórficas, Morin permite-nos distinguir a identificação: o espectador vive intensamente a diegese como se fosse uma das personagens participantes, da adesão: “o espectador, que mesmo sem se identificar com qualquer personagem, vive todo o ambiente e todas as situações da obra com alta intensidade emocional”. [MORIN, 1980].
Nesta mesma obra, Morin apura este conceito salientando a 'participação afetiva': que as emoções num determinado grau podem converter-se em magia, na compreensão subjetiva do espectador:
"A vida subjetiva, a alma íntima, por um lado, e a alienação, a alma animista, por outro, polarizam as participações afetivas embora estas possam englobar, diversamente, tanto umas como outras. Dissemos nós que a magia não se deixa reabsorver inteiramente pela alma, e que esta é, por si própria, um resíduo semi-fluido, semi-reificado da magia."
[MORIN, 1980: 85]
Estes conceitos foram e continuam a ser amplamente estudados: o conceito de participação mística de Lucien Lévy-Bruhl (1857 - 1939), onde podemos ver o espectador como aquele que se envolve íntima e espiritualmente na magia do cinema; desde a sua criação, o cinema tem se alternado entre a representação de rituais e a ritualização em si. Quando analisamos o cinema sob a perspectiva do ritual, as imagens em movimento se tornam pontos de ancoragem do "real", num processo de ‘tornar visível’ aquilo que tem sido adquirido como invisível, ao invés de serem uma mera reprodução do real.
Um conceito importante será o de Samuel Taylor Coleridge (1772 - 1834) que sugere uma "suspensão voluntária da descrença"(3) para apreciarmos o drama e a literatura (e, certamente, o cinema), sob a ideia de que se um escritor / autor pudesse infundir um "interesse humano e uma aparência de verdade" em um conto fantástico, o leitor suspenderia o julgamento sobre a implausibilidade da narrativa. Colocado diante do ‘mainstream’ ou da maioria dos conteúdos disponíveis no nosso tempo atual, a suspensão do julgamento aconteceria em troca da premissa de entretenimento. Neste nosso caso aplicado, aconteceria com a troca da premissa de um certo encantamento associado a um processo de subjetivação. De facto, é um conceito incontornável para o presente estudo que será também mencionado por Roland Barthes (1915 - 1980), mais à frente.
Quando as culturas atingem um certo nível de sofisticação técnica, há menos movimentação externa na participação e diminui a disposição (interna) para a suspensão da descrença. Com o advento dos filmes sonoros, os espectadores soviéticos enfrentaram dificuldades, provocando assim uma reação temporária e uma fase de declínio no cinema soviético. Posto isto, Sergei Eisenstein (1898 - 1948) e Vsevolod Pudovkin (1893 - 1953), principais realizadores soviéticos desta fase argumentaram que, para ser eficaz, o som no filme deveria ser usado simbolicamente e não de forma realista. Sem dúvida, eles intuíram que, para capturar a natureza participativa do espectador, o simbolismo abstrato era mais relevante do que uma certa representação da realidade, que muitas vezes não é sustentada por elementos míticos. Mais tarde, os formalistas russos também desenvolveram ideias com esta mesma sustentação prática, através da sua ‘ostranenie(4)’.
É certo que nesta tentativa de provar que o cinema seria uma arte, a par de outras artes, ou até mesmo, superior no decorrer das primeiras cinco décadas de film theory, alguns teóricos revelaram características que dão uma enorme potência ao cinema na busca de uma nova visão e compreensão do ser humano. Jean Epstein (1897 - 1953) coloca assim o seu pensamento em 1935: “o advento do cinema torna perceptíveis através da visão e do som, seres individuais que pensávamos invisíveis e inaudíveis e divulga a realidade de certas abstrações”. [EPSTEIN, 1935: 18]. Esta capacidade de revelar elementos da realidade invisíveis ao olho humano, faz do cinema o gerador de um potencial sobre-humano para libertar-nos das nossas limitações e alterar a existência humana:
“A essência da vida é superar-se. O homem teve que fazer mais do que andar - ele inventou a roda. Ele tinha que fazer mais do que nadar - ele criou a hélice. E precisando fazer mais do que ver, o homem ampliou os aparelhos microscópicos e telescópicos com o aparelho cinematográfico, criando algo diferente do olho. (...) uma vez que o cinema aborda todos os sentidos, cada ser humano será capaz de superar suas limitações fisiológicas. “
[EPSTEIN, 1930: 56]
Béla Balázs (1884 - 1949), teórico e roteirista húngaro, por sua vez, afirmava que o cinema havia provocado uma evolução de novas capacidades perceptivas e cognitivas nos seres humanos: “O nascimento da arte cinematográfica levou não apenas à criação de novas obras de arte, mas ao surgimento de novas faculdades humanas com que perceber e compreender esta nova arte". [BALÁZS, 1923: 33] Ele declara que é tarefa de sua teoria do cinema "investigar e delinear aquela esfera do desenvolvimento da sensibilidade humana que se desenvolveu em interação mútua com a evolução da arte do cinema". [IDEM: 33] Porque levou à evolução de novas capacidades perceptivas e cognitivas, Balázs, tal como Epstein, declara que a invenção do cinema é uma transformação histórica para melhorar a existência humana.
“A evolução da capacidade humana de compreensão, provocada pela arte do cinema, abriu um novo capítulo na história da cultura humana... Fomos testemunhas não apenas do desenvolvimento de uma nova arte, mas do desenvolvimento de uma nova sensibilidade, uma nova compreensão, uma nova cultura em seu público... Aprendemos a ver.”
[IDEM: 34-35]
Ou ainda pensadores, estudiosos contemporâneos ou filósofos contemporâneos que se dedicaram ao cinema como Gilles Deleuze (1925 - 1995) , Stanley Cavell (1926 - 2018) ou Noël Carroll (1947 - ) para quem o afeto é a “cola” que mantém a atenção do público no ecrã momento a momento. Ele ainda faz a ressalva: "’afetar’ aqui ao invés de ‘emocionar’, para observarmos de formas diferentes as instâncias de uma resposta emocional do espectador.” [CARROLL, 1999: 21] E ainda, no campo das emoções e afetos, Carl Plantinga (1966 - ) no seu interessantíssimo “Passionate Views - Film, Cognition and Emotion” (1999):
“O cinema oferece experiências complexas e variadas; no entanto, para a maioria das pessoas, é um lugar para sentirem alguma coisa. A dependência dos filmes como fornecedor de experiências emocionais para diversos públicos está no centro do apelo deste medium poderoso, mas a natureza destas emoções fílmicas é um dos tópicos menos explorados nos estudos académicos de cinema.”
[PLANTINGA, 1999: 3]
A assunção de uma abordagem quase antropológica, ambiciosa ou ingénua, que revela a ideia de que o filme é uma projeção da nossa consciência mais profunda e ancestral, sendo, segundo o académico Robert B. Ray (1943 - ), o responsável pelo sucesso da indústria cinematográfica de Hollywood: esta indústria tornou-se "intuitivamente Lévi-Straussiana" [RAY, 13]. O elemento espiritual que circunda o cinema transmite a expressão humana primordial, atávica, mesmo de mãos dadas com as tecnologias mais sofisticadas. Esta ideia de relação íntima com o mito, seria largamente explorada no chamado Paradigma Reconstrutivo Californiano, com a colaboração do antropólogo Joseph Campbell (1904 - 1987) numa aplicação prática das suas ideias acerca da jornada do herói (com a ajuda de George Lucas (1944 - ) no Rancho Skywalker(5), enquanto desenvolvia as histórias de “STAR WARS”) e, que resulta no seu livro baseado no documentário realizado pela PBS11, um ano após a sua morte: “The Power of the Myth”(1988). As famosas declinações destes elementos serão posteriormente reconfiguradas por Christopher Vogler (1949 - ) no seu “The Writer’s Journey” até a ideia de Archplot criada por Robert McKee (1941 - ) no seu “Story”, dois livros editados no mesmo ano de 1999.
Após eras, séculos de civilização, é em filme que se transforma esta alma numinosa após seguir este caminho de humanização e dor, e isto acaba por acontecer na sala de projeção como santuário, entre o primeiro cinema e a sua posterior espetacularização: a sua escuridão evoca a imagem de uma palco cerimonial, um poço de iniciação, a noite escura da alma, o ventre da baleia. “O cinema é o túmulo da nossa consciência racional e o útero do nosso renascimento transformado.” [HILL, 1992:12] É o espaço comum onde comunidades se encontram para explorar as profundezas da alma e do nosso pathos dramático. É nosso templo, nossa casa de adoração e nossa sala de oração: um lugar onde podemos evocar e vislumbrar o outro lado: o lado oculto de tudo. Como Edgar Morin escreve e nos emociona:
“O espectador das “salas escuras”, ao contrário, é um sujeito passivo em estado puro. Ele não pode fazer nada, nem oferecer nada, nem sequer um aplauso. Passivamente, ele passa o momento. Subjugado, ele sofre o momento e, de repente, tudo acontece dentro dele, em sua cinestesia psíquica, se podemos assim dizer. Quando os poderes das sombras e do duplo se fundem numa tela branca, numa sala obscurecida, para aquele espectador afundado em seu alvéolo, em sua mônada fechada para tudo, menos para a tela, envolvido na dupla placenta, a de uma comunidade anônima e a da escuridão. Quando os canais da ação são fechados, abrem-se as eclusas do mito, do sonho e da magia.”
[MORIN, 1980: Pg.122]
Ainda a regressar ao conceito de Coleridge (e a um primeiro cinema), a maneira como nos envolvemos com a crença é altamente variável, dependendo do nível de suspensão da descrença que somos capazes de alcançar. «Já não pertenceríamos ao anedotário do primeiro cinema nem seríamos os espectadores que fugiram da cave do Grand Café(6) onde os Lumière projetaram o célebre “L’ARRIVÉE D'UN TRAIN EN GARE DE LA CIOTAT”» [GRILO, 2006: 14], nem olharíamos estarrecidos para o muro que se construiria de forma absolutamente inesperada e mágica, no “DÉMOLITION D’UN MUR”(7), dos mesmos irmãos Lumière. Independentemente do nosso ponto de partida, a participação em si é um fenômeno notavelmente poderoso. Para aqueles que são ingênuos e primitivos, a magia pura de um xamã ou feiticeiro é algo em que estes, seriam capazes de se entregar de corpo e alma, sem qualquer hesitação. Por outro lado, indivíduos modernos são mais cautelosos e críticos em relação à sua participação, com a mente e a consciência constantemente questionando-se e avaliando intelectualmente estas possibilidades. Apesar dessas diferenças de abordagem, todos nós participamos de alguma forma, seja por meio da crença em uma divindade, na crença em uma história com os mesmos parâmetros em que se crêem na divindade, ou através de qualquer outra forma de fé, ativada por um universo simbólico que advenha de um mito. Mesmo as mentes mais sofisticadas e modernas não estão imunes à influência poderosa da participação e da crença.
Este ensaio se compõe metodologicamente a partir da análise hermenêutica de uma literatura criteriosamente selecionada dentro dos seus campos de ação: a antropologia e os estudos do ritual, desde a sua gênese até a sua aplicação no contemporâneo e na vida quotidiana; a filosofia como motor de indagação e busca da compreensão não só nas suas relações com o cinema mas na profunda relação com a ontologia do sermos seus aspectos práticos da sua relação com o mundo e com os seus conflitos; as teorias do cinema e todo um enorme manancial de estudos fílmicos nas mais variadas relações que não somente visa o espectador mas todos os agentes e intervenientes do processo de visionamento de um filme.
Importa ainda referir que esta investigação não se propõe a aprofundar as relações entre o cinema, os espaços de poder e as práticas de resistência, embora essas questões surjam, por vezes, como ressonâncias laterais ao longo do estudo. A abordagem desses temas será reservada para um projeto futuro, com o mesmo rigor e profundidade que aqui se aplicam, no qual se procurará mergulhar nos meandros da relação entre o ser e os dispositivos de poder no cinema.
A presente tese mantém-se, assim, deliberadamente focada no eixo primordial do ritual e da sua capacidade subjetivante, na relação do ser com as suas matrizes arquetípicas e com as estruturas simbólicas profundas que persistem como memória fundadora e trama invisível da experiência humana — mesmo num mundo contemporâneo marcado por uma evidente crise do simbólico e pela erosão das grandes narrativas e dos mitos. Optou-se, de forma consciente, por não expandir esta investigação a outros campos de análise que exigiriam percursos teóricos distintos e densidades próprias.
Tudo isto aqui exposto, mesmo sem este complemento, amplifica as capacidades da história em permitir novas e inesperadas participações do ser neste santuário de apreensão do cinema neste mundo moderno. E aqui, é inequívoco que o cinema ocupa um espaço predominante na paisagem emocional, onde as sociedades se reúnem para expressar e vivenciar sentimentos. Se os estudiosos cognitivos pretendem examinar os fenômenos de forma precisa e compreender melhor o processo emocional de assistir a um filme, através de conceitos emocionais amplos como o prazer, esta tese quer caminhar em direção à sua episteme de forma mais ampla, a observar o desenvolvimento pessoal, social e até espiritual do espectador nos processos de participação ativa e possibilitar uma descoberta da sua função como indivíduo e como parte de uma sociedade que recria constantemente as suas histórias, reescreve os seus mitos e determina vínculos de confiança com narrativas factuais de valor prático na gestão dos sistemas essenciais para a vida quotidiana.
(1) - Termo para definir um conceito central criado na filosofia do pensador alemão Martin Heidegger, na sua obra "Ser e Tempo" (Sein und Zeit), publicada em 1927. In-der-Welt-sein em alemão, descreve e busca uma compreensão acerca da maneira como os seres humanos existem e se relacionam com o mundo ao seu redor.
(2) - O aportuguesamento de empowerment já conta com cerca duas décadas de uso, pelo menos, tendo em conta o registo do dicionário da Academia das Ciências de Lisboa, de 2001. https://ciberduvidas.iscte-iul.pt/consultorio/perguntas/o-uso-do-termo-empoderamento-ii/35901 (consultado em 08-08-2023)
(3) - ‘The willing suspension of desbelief’, muitas vezes usado como expressão no seu idioma original.
(4) - Ostranenie [остранение] foi um termo utilizado pelo formalista russo Viktor Chklovski em seu trabalho “Iskusstvo kak priem” (“A Arte como processo”), publicado pela primeira vez em Poetika (1917)
(5) - Trabalho extensamente documentado no livro The Power of Myth (1998), de Joseph Campbell, ele próprio entrevistado por Bill Moyers, no Rancho Skywalker de George Lucas.
(6) - Neste filme dos Irmãos Lumière, os espectadores daquela que foi a primeira sala de cinema documentada, os espectadores ao verem o comboio a se aproximar do ecrã, os espectadores pensaram ser um comboio real prestes a entrar na sala e fugiram, em desespero.
(7) - Neste filme dos mesmos Irmãos Lumière, o projecionista invertia o movimento da máquina para inverter também no ecrã o ato de demolição do muro, criando uma ilusão da inversa construção.