Narração como cura

Capítulo do livro A CRISE DA NARRAÇÃO, de Byung-Chul Han
Edição Brasileira - Ed. Vozes - 2023

Em uma de suas Imagens do Pensamento, Walter Benjamin evoca a cena originária da cura: “a criança está doente. A mãe coloca-a na cama e senta-se a seu lado. E depois começa a lhe narrar histórias". A narração de histórias cura, na medida em que proporciona um profundo relaxamento e cria um senso de confiança básica. A voz plena e amável da mãe acalma a criança, acaricia sua alma, fortalece o vínculo e lhe dá apoio. Além disso, as narrativas das histórias infantis falam de um mundo intacto. Elas transformam o mundo em um lar familiar: um de seus modelos básicos é a superação feliz de uma crise. Dessa forma, elas ajudam a criança a superar sua doença enquanto crise.

A cura também é a mão que narra. Benjamin relata um poder de cura incomum que emana das måos de uma senhora, cujos movimentos faz parecer que estão narrando: "os seus movimentos eram extremamente expressivos. Mas seria impossível descrever essa expressão… Era como se narrassem uma história”. Toda doença revela um bloqueio interno que pode ser removido por meio do ritmo da narração. A mão que narra libera a tensão, a congestäo e o endurecimento. Ela traz as coisas de volta aos eixos, deixa-as fluir. Benjamin se pergunta se "não seria toda doença curável se se deixasse arrastar o mais longe possível- até a foz - pela corrente da narração". A dor é um dique que inicialmente resiste à corrente narrativa. Mas ela é rompida quando a corrente narrativa cresce e se torna forte o suficiente. Ela entäo leva tudo o que encontra em seu caminho para o mar da feliz libertação. A mão carinhosa guia o fluxo narrativo, na medida em que "delineia uma cama” para ele. Benjamin ressalta que a narrativa que a pessoa doente faz ao médico no início do tratamento já dá início ao processo de cura.
Freud também entende a dor como um sintoma que indica um bloqueio na história de uma pessoa. A pessoa é incapaz de continuar sua história. Os transtornos psíquicos são expressões de uma narrativa bloqueada. A cura consiste em liberar o paciente desse bloqueio narrativo, em verbalizar o não-narrável. O paciente é curado no momento em que ele se “narra mais livremente”. As narrativas, como tais, revelam o poder de cura. Benjamin menciona os ditos mágicos de Merseburg, o segundo dos quais serve como uma magia de cura. Contudo, ele não é composto de fórmulas abstratas. Antes, narra a história de um cavalo ferido no qual Odin usa sua fórmula mágica. Assim, observa Benjamin: "não se trata apenas de repetir a fórmula de Odin, mas de narrar os fatos que o levaram a utilizá-las pela primeira vez".

Um acontecimento traumático pode ser superado se for integrado a uma narrativa religiosa que ofereça conforto ou esperança e, assim, nos ajude a superar a crise. Diante de acontecimentos críticos, também se contam narrativas de crise que ajudam a superá-los, na medida em que os inserem em um contexto significativo. As teorias da conspiração também possuem uma função terapêutica. Elas oferecem uma explicação simples para questões complexas que são responsáveis pela crise. Portanto, elas são narrativas que aparecem sobretudo em tempos de crise. Com respeito a uma situação crítica e de crise, a narração, como tal, tem um efeito terapêutico, na medida em que lhe atribui um lugar no passado. Deslocada para o passado, ela não afeta mais o presente. Ela é, por assim dizer, posta de lado.
O capítulo sobre a ação de Arendt em Vita activa oder vom tätigen Leben tem como epígrafe um dito inusitado de Isak Dinesen, que é ali utilizado como mote: "todas as mágoas são suportáveis quando fazemos delas uma história ou contamos uma história a seu respeito". A fantasia narrativa é curativa. As preocupações são despojadas de sua facticidade opressiva ao serem colocadas em uma aparência narrativa. Elas são absorvidas por ritmos e melodias narrativas. A narrativa as elevam da pura facticidade. Elas se liquefazem no fluxo narrativo em vez de se endurecerem em um bloqueio mental.

Hoje, apesar do storytelling, o clima narrativo está desaparecendo. Também os
médicos já quase não narram mais. Eles não têm tempo nem paciência para escutar. A lógica da eficiência não é compatível com o espírito da narração. Somente a psicoterapia e a psicanálise ainda mostram reminiscências do poder curativo da narração. Momo, de Michael Ende, pode curar as pessoas simplesmente escutando-as. Ela é rica em tempo: "o tempo a única coisa em que Momo era rica. Seu tempo é válido para o outro. O tempo do outro é um tempo bom. Momo prova ser uma ouvinte ideal: "o que a pequena Momo podia fazer como ninguém era: escutar. Isso não é nada especial, alguns leitores poderiam dizer - qualquer um é capaz de escutar. Mas isso é um erro. Poucas pessoas podem de facto escutar. “E a maneira com que Momo sabia escutar era totalmente única". O silêncio amistoso e atento de Momo é capaz até mesmo de trazer ideias à outra pessoa que esta jamais teria podido pensar por conta própria. “Não porque ela tenha dito ou perguntado algo que tenha trazido essas ideias ao outro; não, ela apenas sentou-se e escutou, com toda a atenção e interesse. Ao fazer isso, ela olhava para o outro com seus grandes olhos escuros, e a pessoa em questão sentia que, de repente, surgiam pensamentos que nunca havia suspeitado que existissem nela" Momo garante que o outro narre livremente. Ela cura, na medida em que libera bloqueios narrativos: "em outra ocasião, um menino lhe trouxe um canário que não queria cantar. Essa foi uma tarefa muito difícil para Momo. Ela teve que escutá-lo por uma semana inteira até que ele finalmente começou a gorjear e jubilar novamente.”

A escuta se concentra principalmente não no conteúdo que esta sendo partilhado, mas na pessoa, no quem do outro. Com seu olhar profundo e amigável, Momo visa explicitamente ao outro em sua alteridade. A escuta não é um estado passivo, mas um fazer ativo. Ela inspira o outro a narrar e abre um espaco de ressonância no qual quem narra se sente visado, sente que Ihe escutam, e até mesmo se sente amado.
O toque também tem um poder de cura. Assim como a narração de histórias, ele cria proximidade e confiança básica. Como narrativas táteis, ele libera tensões e bloqueios que levam à dor e à doença. É assim que o médico Viktor von Weizsäcker evoca outra cena originária da cura:

“Quando a irmã vê seu irmãozinho com dor, ela encontra, antes de todo conhecimento, um caminho: carinhosamente, sua mão encontra o caminho; fazendo carinho, ela quer tocá-lo onde dói - eis que a pequena samaritana se torna a primeira médica. Um conhecimento prévio de um efeito originário prevalece inconscientemente nela: ele guia seu impulso até a mão e leva a mão ao toque efetivo. Pois é isso que o pequeno irmão experimentará: a mão lhe faz bem. Entre ele e sua dor surge a sensação de ser tocado por uma mão fraterna, e a dor se afasta dessa nova sensação".

A mão que toca tem o mesmo efeito de cura que a voz narrativa. Ela cria proximidade e confiança. Libera a tensāo e elimina o medo. Hoje vivemos em uma sociedade sem toque. O toque pressupõe a alteridade do outro, que lhe despoja de sua disponibilidade. Não podemos tocar um objeto consumível. Nós o agarramos ou tomamos posse dele. O smartphone, que incorpora o dispositivo digital, cria a ilusão da disponibilidade total. Seu habitus consumista abrange todos os domínios da vida. Ele também rouba do outro sua alteridade e o degrada a um objeto consumível.

A crescente pobreza de contato nos adoece. Se formos totalmnente privados de contato, ficaremos irremediavelmente presos em nosso ego. O toque, em sentido enfático, arranca-nos de nosso ego. Pobreza de contato, em última análise, significa pobreza de mundo. Ela nos deixa depressivos, solitários e ansiosos. A digitalização agrava essa pobreza de contato e de mundo. Paradoxalmente, a crescente conectividade nos isola. Essa é a funesta dialética da conectividade. Estar conectado não significa estar vinculado.
Os “stories" nas redes sociais, que na verdade nada mais são do que representações de si mesmo, isolam as pessoas. Ao contrário das narrativas, eles não geram proximidade nem empatia. Em última instância, eles são informações visualmente embelezadas que tornam a desaparecer após um curto período. Eles não narram, mas anunciam. A busca por atenção não cria uma comunidade. Na época do
”storytelling” como “storyselling”, narração e anúncio são indistinguíveis. Nisso consiste a presente crise da narração.

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