Entre São Paulo e Lisboa, e São Paulo, e Lisboa…

A., 55 anos, nasceu em São Paulo mas vive há 33 anos em Lisboa. Regressou a São Paulo para estar em família por apenas um mês.


“Voltei a São Paulo.
E vejo-me, ao mesmo tempo, como aquele que regressa e aquele que foi moldado pelas ruas, e pelo ruído.
Olho para mim, de fora, como se a cidade fosse um espelho imenso e imperfeito.
Ali, naquela esquina onde antes me perdi, há um outro que sou eu, mais jovem, desorientado, mas cheio de uma energia bruta.
Observo-o.
Ele não sabe ainda que a cidade é um acelerador atómico: acelera-lhe os encontros, multiplica-lhe os embates, expõe-lhe as fragilidades. Eu, agora, reconheço isso. Ele, então, apenas vive.

Ao caminhar pelas avenidas, sinto que faço uma arqueologia íntima.
Cada fragmento do passado emerge como um fóssil inesperado: uma conversa numa padaria, um filme visto num cinema desaparecido para muitos, um cheiro de ‘garoa’ que não mudou.
Olho para esse outro — para mim mesmo, que se deixou atravessar por tudo isso — e percebo que a cidade não apenas guardou as memórias, mas reconfigurou-as.
Ela funciona como placenta, nutre o conflito humano e devolve-me soluções que nunca consegui imaginar.

Partilhar isto é quase inevitável.
Porque não se trata de nostalgia, mas de epifania.
Eu observo aquele que fui e vejo como ele, sem saber, já criava, já curava.
Talvez todos façamos isso: sem consciência, somos parte da cidade que nos molda e que moldamos. Mas agora, nesta escrita, torno-me o mediador. Dou forma à emoção que poderia, num instante, se perder… e, ao dar-lhe forma, encontro sentido.

A partilha, percebo, não é apenas comunicação.
É o meio onde o eu passado e o eu presente se tocam, e onde esse encontro pode ressoar em outros.
Não preciso de muitos, nem me atraem os artifícios.
Preciso apenas de um círculo onde a emoção, atravessada pela razão, se torne oferenda — modesta, mas ética — à comunidade que se dispõe a escutar.

Talvez seja assim que se constrói um bem possível: pela catarse que se transforma em gesto partilhado.

Mas… eu sei…
Foi ouvindo a música dos Legião Urbana, na última noite antes de voltar, que me lembrei que tudo parece ser, ainda mais, assim:


”A noite acabou, talvez tenhamos que fugir sem você.
(…)
Somos pássaro novo… longe do ninho.
Eu sei.
Eu sei.”



L., 54 anos, nasceu em São Paulo, viveu em São Paulo, mas também viveu recentemente um ano e meio em Lisboa. Regressou para São Paulo por razões urgentes. Mas somente por dois meses e meio. Pretende regressar.

“Passei quase um ano em Lisboa... Uma cidade que me ofereceu silêncio, pequenas ruas, a lentidão possível de quem não precisa correr tanto para existir.
Lisboa me deu o Tejo, a luz dourada da tarde, o café demorado em boa companhia... e uma certa paz que parecia inabalável...
Lembro-me do outubro em que cheguei: o céu parecia pintado à mão, cores que mudavam a cada entardecer, como se me recebessem em festa. Havia o Panteão Nacional iluminado, o céu ali parecia cintilar como se fosse tecido de estrelas ainda de dia, enquanto bandos de pássaros riscavam o ar, desenhando movimentos que só Lisboa sabia coreografar...

O bairro da Graça me encantava com sua atmosfera única, e eu fazia questão de caminhar por suas ruas e vielas, sendo absorvida por um cenário mágico e melancólico, com vistas deslumbrantes...

O vento batia no meu rosto quando eu subia para o Saldanha e, naquela cidade, cada esquina era novidade... tudo me era inédito.
Foi também em Lisboa que me reencontrei com os livros... depois de anos longe dos estudos formais, sem pisar em uma universidade, mergulhei novamente na vida acadêmica. O mestrado em Neurociências não foi só teoria ou notas que vieram boas, como uma confirmação silenciosa... foi sobretudo a prova de que a maturidade não é fim, é caminho: também aprende, transforma, reinventa. Estudar outra vez foi abrir uma janela que eu julgava fechada... e perceber que ainda havia horizonte. Durante esse ano, meu cérebro pareceu dançar entre emoções intensas... Frustrações que me testavam, saudades que me rasgaram, alegrias que me inflamavam, surpresas que me despertavam, possibilidades que me faziam acreditar em mim mesma. Cada desafio se tornou um estímulo, cada aprendizado acendeu conexões novas, sinapses que me lembravam do poder da coragem, acima de tudo, da coragem em fazer por mim, pelos meus, pelas minhas escolhas, para superar e transformar qualquer obstáculo que surgisse. Lisboa e o mestrado foram, assim, uma experiência de neurociência em carne viva, onde cada emoção se tornou ponte entre quem eu fui, quem estou me tornando e quem ainda posso ser...

Foi em Lisboa também que descobri a Prosa, uma caverna aconchegante, à meia luz, que me presenteava com ciclos de cinema capazes de me empoderar a cada filme... eu contava os dias para chegar às sextas-feiras. Também conheci o Balzac, um lugar de novas experiências, em que beber um drink tornava-se beber poesia... E a Amor Records, onde reconheci meu lado mais alternativo, distante da formalidade de São Paulo. Ali, naquela cidade, eu experimentava possibilidades: um copo diferente, um trabalho diferente, a liberdade de ser quem eu quisesse ser, estudante, imigrante, desconhecida... alguém que ainda podia arriscar, aprender e inventar.
Em Arroios, descobri outra face de Lisboa: a cidade que se reinventa em cada esquina, feita de vozes, idiomas, kebab's e temperos de todo o mundo. Era como atravessar fronteiras sem sair do bairro, um verdadeiro mosaico humano que me deixava em estado de encantamento... Ali, eu me surpreendia com a naturalidade de encontrar tantas culturas convivendo lado a lado, como se a vida fosse uma grande feira onde cabiam todos os sotaques e cores... Muitas vezes me peguei pensando se aquilo era real, se eu realmente estava vivendo essa Lisboa múltipla, diversa e tão generosa em me mostrar que o mundo inteiro podia estar reunido num só lugar...

Foi entre fachadas cobertas de azulejos e praças que guardam séculos de história que Lisboa me arrebatou. A cidade parecia sussurrar segredos em cada detalhe, as ladeiras que desafiavam o corpo, os miradouros que ofereciam horizontes vastos, os bondes que atravessavam o tempo como quem conta uma memória antiga. Havia uma delicadeza própria naquele lugar, uma sensação de que o cotidiano podia ser obra de arte, onde até o silêncio tinha música.
Lisboa não era apenas destino, era encontro.

E então, voltei... Quando pisei em São Paulo, senti um arrepio que só quem tem a cidade tatuada na pele pode reconhecer. Vi os prédios, as ruas, os detalhes que sempre me acompanharam. Ouvi os pássaros cantando diferente dos de Lisboa, como se até eles soubessem que esta é uma terra única, insubstituível... São Paulo me tira o fôlego... É potência, é movimento, é excesso... É o sanduíche delicioso de pernil do Hocca no Mercadão, o bar do Estadão onde comemos o melhor sanduíche de calabresa da cidade, a madrugada que nunca fecha as portas... É uma explosão cultural que não cabe em um calendário... É a Paulista me recebendo como quem diz: “você fez parte disso, cresceu junto com essa cidade, quase quatro décadas, deixando sua energia e marca nesse chão.”

São Paulo também é raiz... Aqui estão meus filhos, meus pais, minhas irmãs, minha família inteira que pulsa como extensão da própria cidade. Entre o concreto e os grafites, entre o caos e o afeto, São Paulo me ancora no que sou.
No Parque da Aclimação, entre árvores e caminhos, encontro a delicadeza rara dessa metrópole: um respiro em meio à pressa, um espaço onde a cidade parece me devolver o silêncio que perdi. É nela que reconheço minha origem, o passado que me formou...

Mas São Paulo também me cobra... Ela exige produtividade, aceleração, trabalho sem pausa. Aqui, parece que só se vive de verdade quando se está de férias. Estar dentro dela é ser sugada pelo ritmo... estar fora dela é sentir a falta insuportável... Ainda assim, São Paulo me devolve a sensação mais rara de todas: a de pertencimento. Porque aqui, eu sou paulistana. Lisboa me ofereceu a calma, a reflexão... São Paulo me devolve a vida pulsante...

São Paulo me envolve com sua imensidão silenciosa. Estar no Martinelli, no Copan, ou no Terraço Itália é contemplar toda a grandeza dessa cidade diante dos meus olhos, é validar a própria pequenez de quem caminha por ela e ao mesmo tempo, todo o agigantar que ela oferece...
Revisitar lugares como o Madame, ouvir o eco das músicas dos anos 80, é perceber que estar em SP, é um privilégio: sentir, contemplar, habitar, apenas habitar, diante de tanta grandeza...

Entre uma e outra, sou feita de paradoxos: filha, mãe, estudante, mulher que ama e que sonha...

E assim sigo... com um pé na beira do Tejo sentindo o vento em meu rosto e o coração batendo forte no concreto da Paulista...”

Prosa Plataforma Cultural

A Prosa é uma Plataforma Cultural que desenvolve experiências educativas através do poder transformador das artes visuais e narrativas.

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