ALBA
O nome dela é ALBA.
A Alba foi uma galga espanhola que entrou nas nossas vidas como quem pousa suavemente num furacão. Era meados de 2020, a PROSA ainda era um sonho a ganhar forma, e o mundo vivia o silêncio estranho da pandemia. Fomos buscá-la à associação protetora de animais da Emília, que realiza um trabalho extraordinário de resgate de seres marcados por abusos inimagináveis, muitos logo ali ao lado, em Espanha.
Quando a Alba nos foi entregue, trazia no corpo cicatrizes visíveis e profundas. O rastro de uma crueldade que a condenara nos seus primeiros anos de vida. Cicatrizes que paralisavam qualquer olhar, de amantes de animais ou não. A ideia de adotá-la foi da Maria, que viu nela algo que eu, inicialmente céptico, não conseguia compreender. Cresci numa família onde a convivência com animais era desincentivada pelas narrativas religiosas; ter um animal de companhia parecia-me, confesso, uma vulnerabilidade emocional que eu julgava dispensável. Além disso, temia que o cuidado que ela exigiria me distraísse dos meus objetivos.
Mas a Alba ignorou o meu cepticismo e escolheu-nos. Não só nos escolheu, como decidiu amar-nos de forma absoluta, desarmante.
E foi assim que o meu primeiro amor ativo por um animal se tornou uma força transformadora. Como costumo dizer: há um Alexandre antes da Alba e um Alexandre depois da Alba.
Ela era o "outro" em forma pura, não humano, um ser que eu nunca entenderia completamente. E foi exatamente isso que me ensinou. Dormíamos de mãos dadas. Eu acordava a observar a minha mão na dela, naquela pata enorme e desajeitada, onde faltava um dedo — amputado, talvez para que corresse mais rápido. O rosto triangular e longo, que mais parecia um papa-formigas, inclinava-se para mim, com um olhar terno enquanto vocalizava promessas de amor num tom carinhoso que soava a Chewbacca.
A Alba fez a sua passagem e partiu no início de dezembro. Já estava velhinha, embora eu e a Maria alimentássemos sonhos teimosos de longevidade para ela. A sua partida deixou-nos um vazio que ecoa por todas as partes da casa, das salas e corredores da PROSA e todos os lugares imaginários que ela preencheu. (Ah, aquelas visitas dela no relaxamento do yoga…) Foi uma lição de amor que não cessará de vibrar em nós.
Ela ensinou-me que o outro — no contexto multirracial e multicultural em que vivemos — exige de nós mais do que tolerância: exige amor. Um amor profundo, comprometido, que transforma e nos desafia a sermos melhores. Aqui, na nossa freguesia, mesmo a frente da PROSA, vejo diariamente muçulmanos reunidos para entrar na mesquita sob os arcos da igreja católica. Ao lado, como num ritual informal, o meu prato une chop suey com kebab picante. O universo chama-nos a este trabalho de amor num mosaico diverso.
Amar a Alba foi aprender a amar o diferente, a romper as barreiras invisíveis que herdamos das nossas raízes. Foi observar pela primeira vez, com consciência, as marcas do ambiente conservador, segregador e classista onde cresci em São Paulo e perceber como os valores da minha infância estão desalinhados com o mundo que agora abraço.
A Alba foi profundamente amada. Continuará a ser. O amor que aprendi com ela reflete-se, e refletir-se-á, em todos os seres que amarei — humanos, animais, de qualquer raça, credo, sexo ou cor. Porque o amor não é estático; é um fluxo, uma força em movimento, que atravessa, transforma e transborda.
E se há algo que ela me deixou, é a certeza de que o amor — esse amor audaz, pelo outro que não somos — é o único caminho possível para nos tornarmos plenos, inteiros.
_EN
Her name was ALBA.
Alba was a Spanish greyhound who entered our lives like a gentle touch on a raging storm. It was mid-2020, PROSA was still a dream taking shape, and the world was caught in the strange stillness of the pandemic. We brought her home from Emilia’s animal protection association, an organization doing extraordinary work rescuing beings scarred by unimaginable abuses, many of which happen just next door, in Spain.
When Alba was handed to us, her body bore deep, visible scars—marks of cruelty that had condemned her in her early years. Scars that stunned anyone who saw her, whether animal lovers or not. Adopting her was Maria’s idea. She saw something in Alba that I, initially skeptical, could not grasp. I had grown up in a family where living with animals was discouraged by religious narratives; having a pet seemed, I admit, like an emotional vulnerability I thought I could do without. I also feared that the care she would require might distract me from my goals.
But Alba ignored my skepticism and chose us. Not only did she choose us, but she also decided to love us absolutely, disarmingly.
And so my first active love for an animal became a transformative force. As I often say: there’s an Alexandre before Alba and an Alexandre after Alba.
She was “the other” in its purest form—non-human, a being I would never fully understand. And that was exactly what she taught me. We slept holding hands. I would wake up to find my hand resting on hers, that huge, awkward paw missing a toe—amputated, perhaps, to make her run faster. Her triangular, elongated face, resembling that of an anteater, would tilt toward me, gazing tenderly while vocalizing love promises in a sweet tone that reminded me of Chewbacca.
Alba passed away in early December. She was already old, though Maria and I clung stubbornly to dreams of her longevity. Her departure left an emptiness that echoes through every corner of the house, the halls and corridors of PROSA, and all the imaginary spaces she once filled. (Ah, her unexpected visits during yoga relaxation sessions…) It was a lesson in love that will forever resonate within us.
She taught me that the “other”—in the multiracial and multicultural context we live in—demands more than tolerance from us: it demands love. A profound, committed love that transforms us and challenges us to be better. Here in our neighborhood, right in front of PROSA, I see Muslims gathering daily to enter the mosque beneath the arches of the Catholic church. Nearby, as if in an informal ritual, my plate blends chop suey with spicy kebab. The universe calls us to this work of love in a diverse mosaic.
Loving Alba was learning to love the different, to break the invisible barriers inherited from our roots. It was my first conscious reckoning with the conservative, segregated, and classist environment of my upbringing in São Paulo, and understanding how the values of my childhood are misaligned with the world I now embrace.
Alba was deeply loved. She will continue to be. The love I learned from her is reflected—and will continue to be reflected—in every being I will ever love: human or animal, of any race, creed, gender, or color. Because love is not static; it is a flow, a force in motion, that crosses, transforms, and overflows.
And if there’s one thing she left me with, it’s the certainty that love—this bold love for the other who is not us—is the only possible path to becoming whole and complete.