Carta a Virgínia

Virgínia,

Ainda não consegui compreender o essencial da forma como passei a relacionar-me comigo próprio desde o momento em que entraste na minha vida: foste a melhor coisa que me aconteceu.
Nestes 42 anos, nada me fez sentir tanto amor; nada me transformou tanto; nada me fez ser, como agora, aquilo que tenho sido.

Mas pergunto-me sobretudo: como algo tão sublime, tão transformadoramente belo, pode ter-me feito, por momentos, tornar-me na pessoa tão destrutiva, tão execrável que fui naquele fim de semana?

Eu sei, Virgínia. Tens todas as razões para deixar Lisboa novamente: as instituições e organizações continuam a desapontar-te; a renda da casa continua a subir; aquilo que esperas para a tua vida continua tão longe, mesmo quando te excluis das redes, mesmo diante do silêncio.

Estou neste autocarro há mais de nove horas.
Só vejo dunas e vento, um vazio silente neste deserto que me encaixa por dentro — que é um reflexo do que sou por dentro.

Sonho, talvez em vão, com um sentimento de completude: a única coisa que me preenche é imaginar, em modo futuro, uma tarde em que não faremos nada, num próximo fim de semana depois de uma semana caótica… e projetar esse instante para um futuro próximo, para a próxima quarta-feira, o dia depois do meu regresso a Lisboa.

Mas perdi o acesso, o canal. Já não consegues receber-me e ouvir-me como antes. Eu sei: fui eu que tornei esse canal inútil e obsoleto.

Por isso, esta carta.
Será que, através de um meio diferente, surgiria uma oportunidade impossível?

Virgínia, não vás embora

Neste mundo tão inóspito, não poderíamos criar um outro aterro? A nossa própria costa? Um espaço sagrado que nunca ninguém pisou? Não poderíamos ficar? Ser? Parar com os abandonos, com as fugas?

Fica, por favor.

Este autocarro atravessa o deserto.
Talvez eu já esteja noutro espaço-tempo.
Esta carta chegará, decerto, quando eu estiver noutra civilização, tão diferente da nossa, distante. Já não estarei sozinho — mas quero estar contigo.

Se não, estarei sempre sozinho neste deserto que nem este autocarro conseguiu atravessar.

Manuel.


Carta ficcional escrita por Alexandre Braga

Prosa Plataforma Cultural

A Prosa é uma Plataforma Cultural que desenvolve experiências educativas através do poder transformador das artes visuais e narrativas.

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