Há rituais que se repetem sem que percebamos: gestos de resistência, de luto, de amor, de persistência. No cinema, essas repetições ganham corpo, imagem e som. São gestos que invocam forças invisíveis – o desejo de justiça, o peso da perda, o tempo que insiste em não passar. Neste segundo ciclo, Os Rituais do Cinema regressa para explorar o que acontece quando a dor se transforma em ação, e quando a ausência se torna presença.

THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI (2017), de Martin McDonagh, é um ritual de revolta. Mildred Hayes ergue três cartazes à beira da estrada como quem acende velas diante de um altar profano. É uma mãe que recusa o esquecimento e transforma a paisagem numa denúncia permanente. O filme é uma cerimónia de ira e humanidade — onde o gesto simbólico de erguer cartazes se torna catalisador de toda uma comunidade. Cada personagem, marcada pela culpa e pela imperfeição, atravessa a sua própria purificação.

No dia seguinte, A GHOST STORY (2017), de David Lowery, propõe um ritual inverso: o da contemplação. Um fantasma permanece na casa onde viveu, preso ao tempo e à memória, como quem repete infinitamente o gesto de permanecer. Aqui, o silêncio é litúrgico; o lençol é uma mortalha e um véu. O filme transforma o luto num espaço de meditação sobre o tempo, o amor e o esquecimento — uma oração visual feita de planos longos, luzes rasantes e quase nenhuma palavra.

Ambos os filmes partilham uma inquietação comum: o que fazer com o irreparável? Como lidar com o que já não pode ser mudado? THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI responde com o gesto público, incendiário, enquanto A GHOST STORY responde com o gesto interior, espectral. Entre um e outro, o espectador é convidado a reconhecer-se nesses rituais — ora de confronto, ora de aceitação — e a sentir o cinema como espaço de transformação.

Assistir a um filme é, afinal, também um rito: atravessamos a escuridão, deixamos o mundo suspenso e aceitamos partilhar o tempo de outro. Talvez seja nesse intervalo — entre o visível e o invisível — que o cinema continua a operar a sua magia.

(Curadoria de Alexandre Braga)


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There are rituals we repeat without noticing them: gestures of resistance, grief, love, persistence. In cinema, these repetitions gain body, image, and sound. They summon invisible forces — the longing for justice, the weight of loss, the time that refuses to pass. In this second cycle, The Rituals of Cinema returns to explore what happens when pain turns into action, and when absence becomes presence.

THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI (2017), by Martin McDonagh, is a ritual of revolt. Mildred Hayes raises three billboards by the roadside as if lighting candles before a profane altar. She is a mother who refuses oblivion and turns the landscape itself into a permanent act of protest. The film is a ceremony of anger and humanity — where the symbolic gesture of erecting signs becomes a catalyst for an entire community. Each character, marked by guilt and imperfection, undergoes a form of purification.

The following day, A GHOST STORY (2017), by David Lowery, offers an opposite kind of ritual: that of contemplation. A ghost lingers in the house where he once lived, trapped in time and memory, endlessly repeating the gesture of remaining. Here, silence is liturgical; the sheet is both shroud and veil. The film turns mourning into a space of meditation on time, love, and forgetting — a visual prayer made of long takes, glancing light, and almost no words.

Both films share a common unrest: what to do with what cannot be undone? How to live with the irreparable? THREE BILLBOARDS OUTSIDE EBBING, MISSOURI answers through public, incendiary gesture; A GHOST STORY through quiet, spectral introspection. Between one and the other, the spectator is invited to recognize themselves within these rituals — of confrontation and acceptance — and to feel cinema as a space of transformation.

Watching a film is, after all, a rite in itself: we enter the darkness, suspend the world, and agree to share someone else’s time. Perhaps it is within that interval — between the visible and the invisible — that cinema continues to perform its quiet magic.

(Curatorship by Alexandre Braga)