Num momento em que o mundo se polariza e as fronteiras culturais se tornam mais rígidas, o cinema, como sempre, emerge como um dos últimos bastiões da verdade e da reflexão. O Ciclo NOVO CINEMA RUSSO I traz à tona duas obras contemporâneas de realizadores que, com precisão cirúrgica, nos conduzem pelos labirintos sombrios e complexos de uma Rússia moderna, marcada por décadas de liderança autocrática e um tecido social entrelaçado com hipocrisia e desesperança. 

Apresentamos duas narrativas distintas que, sem necessidade de explicitar mensagens políticas, capturam a essência de um país onde a liberdade, em todas as suas formas, parece escapar por entre os dedos dos seus cidadãos.

"LOVELESS" (Nelyubov, 2017) de Andrey Zvyagintsev, é uma obra-prima fria e desoladora, que nos lança num abismo emocional refletido na história de um casal em processo de divórcio. A ausência de amor, literalmente personificada no desaparecimento do filho, torna-se uma poderosa metáfora para uma sociedade onde as conexões humanas são descartáveis, e o egoísmo é a moeda corrente. Zvyagintsev, conhecido por dissecar as fissuras da alma russa, oferece-nos um filme que é simultaneamente um retrato e uma crítica feroz do vácuo emocional que permeia a vida moderna naquele país.

"THE MAN WHO SURPRISED EVERYONE" (Chelovek, kotoryy udivil vsekh, 2018), de Natalya Merkulova e Aleksey Chupov, desafia-nos com uma história que mistura realismo brutal com elementos quase míticos. Quando um caçador siberiano, confrontado com a sua mortalidade, toma uma decisão radical e inesperada, ele se torna o espelho de uma sociedade incapaz de lidar com a diferença e a mudança. Este filme, mais do que uma história individual, é um comentário mordaz sobre os limites da compreensão e aceitação numa sociedade tradicionalista, dominada pelo medo do "outro".

É imperativo que cheguemos ao fim de um certo bloqueio ao que é russo. A arte e, em particular, o cinema, têm o poder de transcender barreiras políticas, ideológicas e culturais. Apesar das complexidades geopolíticas, o cinema russo contemporâneo mantém uma vitalidade única e uma profundidade que não pode ser ignorada. Este ciclo é, assim, uma declaração em favor da arte e da liberdade de expressão, um convite para que nos abramos à riqueza das narrativas que, independentemente da sua origem, têm muito a dizer sobre a condição humana.

(Curadoria de Alexandre Braga)