A liberdade é um projeto coletivo
1. Vivemos tempos em que a democracia, embora consolidada, enfrenta desafios subtis e persistentes. A manipulação da informação, potenciada pelas redes sociais e algoritmos opacos, ameaça distorcer a perceção pública e enfraquecer os alicerces democráticos. Este ano, assinalam-se 50 anos da conquista do direito de voto em Portugal — um marco que deve ser celebrado não apenas como memória, mas como responsabilidade viva. Criar, hoje, uma resistência lúcida, feita com sabedoria e humanismo, é um ato fundamental de coragem — e talvez também de criação.
Recentemente, a Universidade de Harvard recusou-se a ceder às exigências da administração Trump, que incluíam alterações nos seus programas académicos e políticas de admissão. Em resposta, o governo federal congelou mais de 2 mil milhões de dólares em financiamento à instituição. Este episódio destaca a importância da autonomia académica e da resistência a tentativas de controlo ideológico.
Como afirmou Jean-Paul Sartre, com uma sublime tradução e introdução de Vergílio Ferreira, em O existencialismo é um humanismo:
"O homem está condenado a ser livre; porque, uma vez lançado no mundo, é responsável por tudo o que faz."
Esta liberdade implica responsabilidade não apenas individual, mas coletiva. A democracia não se sustenta apenas pelo voto, mas pela vigilância constante contra a desinformação e pela promoção de uma cultura de verdade e transparência.
Neste mês de maio, faremos a segunda edição do ciclo de cinema "MANUAL DE FUGA DE UMA FALSA NARRATIVA" e a nossa proposta é criarmos mais uma vez um espaço de reflexão sobre estas questões. Através das obras selecionadas, convidamos à análise crítica das narrativas que moldam a nossa sociedade e à reafirmação dos valores humanistas que devem guiar a nossa convivência democrática.
É por isso que Sartre, depois de afirmar que “o homem está condenado a ser livre”, escreverá mais adiante:
“Eu somente sou livre se todos os homens forem livres.”
E talvez por não haver coincidências no pensamento, vem à memória uma frase atribuída a Helena P. Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica e sobre os seus três objetivos:
"A humanidade deve ser uma só, sem distinção de raça, credo, sexo,
casta ou cor."
Talvez aqui resida o verdadeiro cerne do nosso tempo: compreender que a liberdade individual, tão frequentemente invocada, só se concretiza num contexto em que todos têm acesso às mesmas condições de expressão, de informação e de escolha. Que a construção de uma democracia saudável é inseparável da construção de um espaço comum – onde nenhuma narrativa seja imposta sem ser interrogada, e onde o pensamento não se conforme, mas procure.
As eleições não são um fim, mas um momento de verificação. E talvez também um momento para imaginar, com humildade, o que poderíamos ser — se ousássemos pensar juntos.
2. Vivemos tempos de uma certa nostalgia do absoluto, numa assumpção de que perdemos a nossa conexão fluida e natural com o divino e que vivemos numa espécie de solidão metafísica do homem.
No romance Para Sempre, de Vergílio Ferreira, há uma frase emblemática:
"Não creio em Deus, mas tenho saudades dele."
Ele captou como poucos essa tensão.
Esta frase tem sido citada inúmeras vezes como expressão da condição espiritual moderna: Vergílio não se enquadrava em nenhum dos dois sentidos do existencialismo, ateu ou cristão. Ele provavelmente não se definiria como ateu no sentido estrito, mas também não era crente nos moldes tradicionais. Era um pensador da ausência de Deus, mas o seu pensamento é cheio de uma angústia metafísica, de uma busca de transcendência, de uma explicação para o absurdo existencial, e até de um certo “sentido do sagrado” — mas sem se inscrever numa religião organizada. É um pensamento próximo do que poderíamos chamar de espiritualidade laica, ou mesmo de um simples “existencialismo aberto ao mistério”.
Talvez Vergílio Ferreira seja, precisamente, um bom exemplo da coexistência destas duas forças em nós — o impulso racional e crítico, e a inquietação íntima diante do mistério. Reconhecer que somos feitos de partes aparentemente opostas — razão e fé, certeza e dúvida, corpo e espírito — é também um pressuposto para qualquer democracia real: ela exige que saibamos escutar essas forças em equilíbrio, e que possamos oferecer partes iguais de nós como canal desse fluxo.
Uma democracia viva é feita por sujeitos inteiros, que não negam as suas contradições, mas as colocam ao serviço de um bem comum — onde cada voz ou gesto não são apenas tolerados, mas absolutamente necessários.
Que nas eleições deste dia 18, a nossa democracia se fortaleça repleta de gestos em busca da verdade e felicidade.
_ENG
Freedom is a Collective Project
1. We live in times when democracy, though consolidated, faces subtle and persistent challenges. The manipulation of information, fueled by social media and opaque algorithms, threatens to distort public perception and weaken the very foundations of democracy. This year marks the 50th anniversary of the conquest of the right to vote in Portugal — a milestone that must be celebrated not merely as a memory, but as a living responsibility. Today, building a lucid resistance, grounded in wisdom and humanism, is a fundamental act of courage — and perhaps also of creation.
Recently, Harvard University refused to comply with demands from the Trump administration, which included changes to its academic programs and admissions policies. In response, the federal government froze more than two billion dollars in funding to the institution. This episode highlights the importance of academic autonomy and the need to resist attempts at ideological control.
As Jean-Paul Sartre wrote — in a sublime translation and introduction by Vergílio Ferreira, in Existentialism is a Humanism:
"Man is condemned to be free; because once thrown into the world, he is responsible for everything he does."
This freedom implies not only individual responsibility but collective responsibility as well. Democracy is not sustained merely by voting, but through constant vigilance against disinformation and by fostering a culture of truth and transparency.
This May, we will hold the second edition of the film cycle HANDBOOK FOR ESCAPE FROM A FALSE NARRATIVE, proposing once again a space for reflection on these urgent issues. Through the selected films, we invite a critical analysis of the narratives that shape our society and a reaffirmation of the humanist values that must guide our collective life.
It is for this reason that Sartre, after declaring that “man is condemned to be free,” would later write:
"I can only be free if all men are free."
And perhaps, as there are no true coincidences in thought, we are reminded of a phrase attributed to Helena P. Blavatsky, founder of the Theosophical Society and its three fundamental objectives:
"Humanity must be one, without distinction of race, creed, sex, caste, or color."
Perhaps here lies the true core of our time: to understand that individual freedom, so often invoked, can only be realized in a context where everyone has equal access to expression, to information, and to choice. The building of a healthy democracy is inseparable from the construction of a common space — where no narrative is imposed without being questioned, and where thought does not conform, but seeks. Elections are not an end in themselves, but a moment of verification. And perhaps also a moment to imagine, with humility, what we might become — if we dare to think together.
2. We live in times of a certain nostalgia for the absolute, a sense that we have lost our natural and fluid connection with the divine and now inhabit a kind of metaphysical solitude. In the novel Para Sempre (Forever), by Vergílio Ferreira, there is an emblematic line:
"I do not believe in God, but I miss Him."
Few captured this tension as well as he did. This phrase has been cited countless times as an expression of the modern spiritual condition: Vergílio Ferreira did not fully align with either atheistic or Christian existentialism. He would probably not have defined himself as a strict atheist, nor did he conform to traditional notions of belief. He was a thinker of the absence of God, yet his thought is imbued with metaphysical anguish, a search for transcendence, a quest for meaning amidst existential absurdity, and even a certain "sense of the sacred" — though without anchoring himself to any organized religion. It is a form of what we might call secular spirituality, or perhaps simply an “existentialism open to mystery.”
Vergílio Ferreira may, in fact, be a remarkable example of the coexistence of these two forces within us — the rational and critical impulse, and the intimate unease before mystery. Recognizing that we are made of seemingly opposing parts — reason and faith, certainty and doubt, body and spirit — is also a fundamental premise for any true democracy: it demands that we listen to these forces in balance and offer equal parts of ourselves as channels for this flow. A living democracy is made of whole subjects, who do not deny their contradictions but place them in the service of a common good — where every voice is not merely tolerated, but necessary.
May our democracy be strengthened in the elections held on the 18th, full of gestures of truth and happiness.