HAL HARTLEY e o ‘indie’ americano: filmar o conflito humano provocado por todo um sistema em crise, a partir de um cinema, também em crise.

Hal Hartley surge como um dos realizadores e argumentistas mais livres e ousados do cinema independente norte-americano e é autor de mais de 30 filmes desde 1988. Também produtor dos seus próprios filmes foi diversas vezes premiado nos Festivais de Cannes e Sundance, e teve várias retrospectivas da sua obra pelo mundo inteiro.
Representante de uma força que surge no cinema americano em meados dos anos 80: a chamada ‘Generation X’ ou os ‘The New Outsiders’, aqui em conjunto com Jim Jarmusch, Gus Van Sant entre outros: pretendem criar uma revolução consistente na indústria cinematográfica americana: (Isto fica confirmado com “Stranger than Paradise”, de Jarmusch a vencer Cannes em 1984.)
Mas surgirão aqui mais nomes sonantes na representação deste cinema: Steven Soderbergh, Quentin Tarantino, Sofia Coppola, Wes Anderson e muitos outros. Um cinema como rito de passagem, que sacrifica, mutila de forma cáustica toda uma verdade instituída e mostra a juventude, retrato da sociedade de uma país inteiro em metamorfose, em pleno ‘devir’.

Hartley, tal como outros cineastas da sua geração, cruzam as suas narrativas com a questão central do jovem americano num contexto de relações: com a política neoliberalista, já fora das utopias de outras gerações e em plena crise de um sistema de crenças: das estruturas religiosas, da corrosão da estrutura familiar e do conservadorismo patriarcal. Uma geração de jovens que se refugiam em outros dogmas: sexo, drogas, música (o ‘grunge’), desportos radicais ou a simples atitude de negação das práticas das gerações anteriores, mesmo com todas as dificuldades financeiras que a classe média começa a viver naquele país.

Com largas influências de um cinema também fora dos limites clássicos europeu, a Nouvelle Vague francesa, o Novo cinema alemão e a vontade de fazer um certo cinema ‘arthouse’ em pensamento americano, levaram Hartley a reconstruir linguagens através de um cinema com influências incontornáveis como Bresson, e como enfatiza David Bordwell: Jean-Luc Godard. É daí que surge um trabalho intenso e novo da sua dramaturgia: da forma como enquadra, tentando abandonar um cinema naturalista e assumindo a representação realista do acontecimento, mesmo que num repleto ‘set’ de alegorias e que leva-o à um estatuto consagrado (ainda à meio da sua trilogia de Long Island: The Unbelievable Truth + Trust + Simple Men, filmes de 1990 a 1994) de criador de uma ‘estética da banalidade’: três filmes que apresentam de forma segura, as ferramentas precisas de uma linguagem que este realizador resolve inscrever na história do cinema contemporâneo: o ‘esmagamento’ das personagens no ecrã, a forma como anula a profundidade de campo, reduzindo o espaço de manobra do ator na resolução do plot, ou ainda a criação de conceitos como a ‘repetição da diferença’, trabalhado tanto na estrutura e na montagem, bem como na escolha da alegoria e de elementos textuais do filme ou diálogos: a ideia de um processo narrativo cíclico que traz um novo elemento e mantém a sua revisitação constante com um agravamento do seu valor, a fim de mostrar toda a sua potência na resolução do enredo.

Hal Hartley, sempre mas sobretudo nesta fase da sua filmografia, mostra-nos o colapso da instituição familiar. (no seu tempo e… ainda nos dias de hoje) Deixou-nos, neste âmbito, a célebre frase: “A family is like a gun. You point it in the wrong direction, you’re going to kill somebody.” A conhecer a sua obra, vemos que só poderemos sobreviver num processo de reaprendizado e a nos articular com as novas realidades da família, das questões de gênero, do abandono ou encontro de novas crenças, das desilusões contínuas acerca de fórmulas que já não funcionam neste mundo global e pós-normativo. Fazer cinema traz-nos a enorme responsabilidade de mostrar a verdade: de que as famílias reais não eram aquelas que se viam nos sitcoms da utopia televisiva americana.
Uma coisa foi certa: aquilo não era somente uma crise. Era uma transformação que se tornou constante e contínua, não só na sociedade americana mas em toda civilização ocidental.

Hoje, Hal Hartley mantém a sua produtora de cinema, Possible Films, em Nova Iorque.

Para ler mais:

On David Bordwell:
http://www.16-9.dk/2005-06/side11_inenglish.htm

On Roger Ebert:
https://www.rogerebert.com/interviews/hal-hartley-metrograph-interview

Anterior
Anterior

PETER BROOK e o seu ‘Mahabharata’

Próximo
Próximo

“You can make a shrine out of anything.” PART I