A criação da imagem como manifestação do real: Reflexões sobre Lascaux

A minha visita a Lascaux, no fim de agosto, trouxe à superfície uma reflexão profunda sobre o papel da imagem como uma manifestação do real, um conceito que atravessa milénios e se inscreve na nossa história visual e espiritual. Diante da grandiosidade das pinturas rupestres, a presença dos bisontes, cervos, cavalos e, especialmente, da enigmática cena no 'poço' — considerada uma das mais antigas narrativas visuais do ser humano — trouxe-me a compreensão de que, para essas primeiras comunidades, pintar era um ato essencial e sagrado: uma forma de oração.

Em Lascaux, a imagem não era apenas representação; era uma forma de desejo projetado, uma oração visual. Pintar um animal na parede era, na verdade, uma forma de evocá-lo para a caça ou de assegurar o sucesso da jornada. Naquele contexto, a criação da imagem era uma maneira de moldar o real, não através de palavras ou de orações convencionais, mas através da materialização visual daquilo que se desejava ou se precisava para a subsistência da comunidade. Cada linha, cada cor misturada com o pó das pedras, trazia consigo a crença no poder da imagem como uma conexão direta com as forças naturais e espirituais do seu mundo.

Nestas reflexões sobre a arte a partir de Georges Bataille, ou o deslumbre de Joseph Campbell diante de uma das primeiras ‘catedrais’ da humanidade, este conceito encontra eco nos registros rupestres do ‘poço’ de Lascaux, onde uma figura humana caída, de aparência quase espiritual, divide espaço com um grande animal, talvez ferido ou em combate. Esta composição visual, rudimentar e poderosa, parece-nos, ainda hoje, um instante congelado de história, onde não só se documenta o mundo mas também se escreve uma narrativa sobre a relação do ser humano com o mistério, o risco e o desconhecido. É como se, nesse ‘poço’, a humanidade começasse a esboçar uma história feita não só de eventos, mas de simbolismos e sentimentos profundos — talvez medo, talvez respeito, talvez a tentativa de compreender a fragilidade humana diante da natureza.

Ao cruzar essa experiência com o tema da imagem como manifestação do real, percebo como a necessidade de transformar o invisível em visível, o desejo em forma concreta, continua a ser um impulso fundamental na nossa criação artística e visual. A imagem rupestre, tal como a criação contemporânea, desafia a simples documentação e transforma-se numa expressão de desejo e transcendência. Assim, ao voltarmos o olhar para os traços antigos de Lascaux, somos convidados a refletir sobre o nosso próprio uso da imagem como um meio de aproximar, de orar, de desejar, de compreender — uma prática ancestral que ecoa no nosso imaginário até hoje.

 

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The Creation of Image as a Manifestation of the Real: Reflections on Lascaux

My visit to Lascaux at the end of August brought to the surface a profound reflection on the role of the image as a manifestation of the real, a concept that spans millennia and is embedded in our visual and spiritual history. In the presence of the grandeur of the cave paintings, with bison, deer, horses, and especially the enigmatic scene in the "well"—considered one of humanity’s earliest visual narratives—I came to understand that, for these early communities, painting was both essential and sacred.

At Lascaux, the image was not merely representation; it was a form of projected desire, a visual prayer. Painting an animal on the wall was, in fact, a way to summon it for the hunt or ensure a successful journey. In this context, creating the image was a means of shaping reality—not through words or conventional prayers but through the visual materialization of what was desired or needed for the community's survival. Each line, each color mixed with stone dust, carried with it a belief in the power of the image as a direct connection to the natural and spiritual forces of their world.

This concept finds resonance in the cave paintings in the “well” at Lascaux, where a fallen human figure, almost spiritual in appearance, shares space with a large animal, perhaps wounded or in combat. This visual composition, rudimentary and powerful, still appears to us as a frozen moment of history, where not only is the world documented, but a narrative begins to take shape regarding the relationship between humanity and mystery, risk, and the unknown. It is as if, in this “well,” humanity began to sketch a story made not only of events but of profound symbolism and feeling—perhaps fear, respect, or an attempt to understand human frailty in the face of nature.

By linking this experience to the theme of the image as a manifestation of the real, I realize how the need to transform the invisible into visible, desire into concrete form, remains a fundamental impulse in our artistic and visual creation. The cave image, like contemporary creation, transcends mere documentation and becomes an expression of desire and transcendence. Thus, as we turn our gaze to the ancient traces of Lascaux, we are invited to reflect on our own use of the image as a means of approaching, praying, desiring, understanding—a primal practice that continues to resonate within our imagination to this day.

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