com que lorca dancei
Esta exposição desenvolve-se no âmbito do Grupo de Estudos Artísticos, coordenado pelos fotógrafos e formadores do Instituto Português de Fotografia (IPF): Carla Fragata, Luís Carvalhal e João de Goes.
Trata-se de uma exposição fotográfica em forma de instalação, com uma forte abordagem experimental em torno do poema “Pequeño Vals Vienés”, de Federico García Lorca.
INAUGUROU A 7 DE OUTUBRO DE 2022, ENTRE ÀS 18h00 E ÀS 21h00
ESTEVE PATENTE DE 7 A 28 DE OUTUBRO
Segundas a sextas, das 11h00 as 19h00
Sábados, das 11h00 as 16h00
ENTRADA LIVRE
SOBRE A EXPOSIÇÃO:
En Viena hay cuatro espejos…
A presente exposição reúne um conjunto de trabalhos de professores e alunos do grupo de estudos artísticos do IPF, realizados em torno do poema Pequeño Vals Vienés (1930) de Federico García Lorca (1898-1936), publicado pela primeira vez em 1940 no seu Poeta en Nueva York. Apesar da importância quer no contexto da produção poética de Lorca quer para a história da poesia do século XX, talvez para o grande público este poema em particular tenha ficado mais conhecido através da versão cantada por Leonard Cohen em Take This Waltz (não esquecendo as versões posteriores, na língua original, que aproveitam a melodia de Cohen, como é o caso das de Enrique Morente, Ana Belén ou a mais recente de Sílvia Cruz). Esta ligação à música parece vir da própria métrica do poema, todo ele construído em ritmo de valsa. Um poema que apela a uma atmosfera onírica, tão cara aos surrealistas com quem partilhava muito dos seus interesses artísticos (além da poesia, Lorca desenhava intensamente e chegou a fazer uma série de desenhos para ilustrar os seus poemas, inclusive para o conjunto de poemas de Nova Iorque). Amor e vida, dor e morte, desejo e melancolia de uma perda anunciada misturam-se como duas faces da mesma realidade. A cada momento, todo o poema convoca determinadas imagens no leitor e Lorca estava consciente disso. Não só é algo intrínseco à própria natureza da poesia como Lorca tinha elaborado uma lista de fotografias que poderiam acompanhar os poemas (o que nunca foi concretizado). Chegamos assim a este momento e a este conjunto de trabalhos. Há uma interrogação prévia que podemos colocar: existe uma relação entre a fotografia e a poesia? Como se relacionam? Se em relação à primeira questão a resposta aparentemente é mais simples (mesmo intuitivamente podemos dizer que sim) podemos sempre interrogarmo-nos sobre que tipo de fotografia estamos nós a falar. Toda a fotografia é igual? A resposta é não; a fotografia é um conjunto de práticas complexas, de natureza diferente, com princípios e objetivos diversos e, por vezes, nem partilham a mesma base técnica no seu fazer inicial. Partindo deste princípio, é mais seguro dizer que há certas fotografias que se aproximam da experiência poética, seja pelo lado da produção, em que o autor parte do texto poético para ir construindo as suas imagens ou pelo lado da receção em que o espetador vai (re)construindo o poema através dos sentidos que a imagem lhe desperta. Talvez seja este o processo mais comum e que nos permite encontrar poesia em algumas imagens (certamente não em todas as imagens) nas quais o poema se revela. O caminho entre as palavras e as imagens, quando saímos da literalidade, não é um caminho direto e imediato. As imagens não são um mero espelho da realidade. É necessário um dispositivo que traduza uma linguagem noutra e encontre um campo comum de entendimento. De entre todos, talvez a metáfora seja o mais usual. Olhando este conjunto de trabalhos, encontramos alguns elementos comuns como por exemplo os fios, elementos de ligação entre imagens, como se fossem a materialização de um pensamento e ao mesmo tempo a fragilidade de tudo o que os une, o que os leva de um ponto a outro, como nos passos rodopiantes de uma valsa que se desenrola sem fim à vista. Ou as transparências que, de entre muitas características fotográficas é a que melhor corporiza a camada de sentidos que constitui uma imagem. Todas as imagens são transparentes no que mostram e opacas no que escondem. O uso da transparência no suporte fotográfico lembra essa fuga a um sentido unívoco. Cada imagem que se sobrepõe acrescenta sentido a todas as outras. O espelho, metáfora inicial da fotografia, que cria na sua reflexão uma mise en abîme da imagem: a reflexão da reflexão, da reflexão. O espelho tem o seu próprio ponto de vista e amplia a nossa perceção do espaço refletido, ainda que seja o simples plano de uma imagem. Ainda lugar para a destruição de imagens, a sua dissolução no meio líquido de onde vieram, lembrando os processos tradicionais de criação da imagem fotográfica. Mas esta fuga à representação, esta morte do suporte físico da imagem, dá lugar à reconstrução, ao surgimento de outras imagens de outras narrativas, que nascem da junção de elementos dissonantes, um pouco como o processo de criação de sentido através da junção de contrários no poema original. A terminar, a imagem do mar e de um buraco negro. A poesia é também isso. Um mar de palavras que são arrastadas para o fundo de cada um de nós.
Façam como com a poesia, em que deixamos as palavras a ressoar no nosso espírito a criarem relações inesperadas. Olhem as imagens devagar, deixem-nas fazer o seu caminho na vossa mente e descubram novos sentidos para o mundo.
francisco feio, outubro de 2022
OBRAS:
Memórias que ecoam na madeira, que fogem da fricção e do dedilhado.
Há quatro espelhos onde reflectem o passado e o presente, onde fervilham como se fossem levados pela frequência das cordas vibrantes.
O palpite da madeira sob o queixo, a frieza do metal entre os dedos e a resistência à repercussão da incessante vontade.
Há quatro espelhos onde as vivências ressoam, como ecos que pululam na consciência e aumentam a intensidade da saudade daquilo que foi, e o anelo do que poderia ter sido.
Perdida entre a rítmica e os reflexos, com que Lorca dancei?
A vida e os sonhos que brincam no meu ser, entre quatro espelhos que ressoam com força neste instante e onde a futuro, a ressonância atingirá a vontade.
Estou sem pele
Na fragilidade que o amor tem
No absoluto, em guerra, em mim.
Varro as folhas secas.
São perigosos os fragmentos e as flores.
Deixo um cabelo...
Não quero que morra o piano ou a valsa nos meus braços.
Quero os lírios, os jacintos e as açucenas;
O conhaque e os espelhos abertos para mil janelas;
O violino e a guitarra.
Estou sem pele
Na fragilidade que o amor tem
e continuo
Amanhã
Sempre
Vislumbrei aquele olhar e reconheci o desassossego.
Inquietude em cada manifesto do inconsciente, de imaginação e dos sonhos.
O desassossego que nutre a insaciedade que por vezes nos leva a quase insanidade.
Aquele que instiga, irrita, maltrata, ilumina , alimenta e mata!
O desassossego: o dele e o meu, que sendo tão próprios e distintos nos fazem dançar em paralelos intemporais, na mesma intensidade de um delicioso e tortuoso compasso.
To·mas?
ESM – Experience Sampling Method
ESM – Experience Sampling Method (década de 70, século XX): metodologia intensiva de investigação, desenvolvida por Mihaly Csikszentmihalyi (1934 – 2021, EUA). Após cada um de 10 sinais aleatórios diários (bipper), os participantes preenchem imediatamente um questionário, identificando o ambiente em que se encontram, o que se encontram a fazer, o que estão a pensar e como se sentem.
Este psicólogo dedicou a sua carreira ao estudo daquilo que faz as pessoas felizes.
À procura de estados de satisfação profunda, estados de «fluxo».
Pequeño Vals Vienés, Gabriel Garcia Llorca.
Um convite à vida?
Quero-te, quero-te, quero-te.
A dança e a vida, uma fluidez de sequências, humores e perceções. E o amor.
Com a cintura quebrada.
To-mas? efetua uma reflexão sobre vida, luz, trevas, passados, presentes, possibilidades, perdas, fluidez, constrangimentos, percursos…
Em busca da felicidade.
Essa? Saberás quando a sentires. Ou quando não.
Se realmente queremos viver, é melhor que comecemos a tentar imediatamente; se não queremos, não faz mal, mas é melhor começarmos a morrer.
W. H. Auden (citado no livro Fluir, Mihaly Csikszentmihalyi, Relógio D'Água)
Um buraco negro tem uma força gravitacional tal, que nada lhe escapa. Menos em fantasia.
Olhar intensamente as estrelas - estar siderado - é uma condição universal, essencial para a capacidade de fazer alguma coisa com a vida. Usar da fantasia para combater a realidade, mesmo sabendo que esta se impõe absolutamente, é fugir ao nada. O desejo (do latim desiderare ou olhar os astros) assume, pois, uma força particular nessa fuga à realidade.
do livro morto.
quando, a meio duma crise de meia idade, me impulsionei a criar um diário fotográfico das minhas constantes tentativas de fuga a encarar uma realidade incontornável, de uma simples e ingénua partilha este poema encontrou as minhas imagens.
de repente, o constante tornado de sentimentos foi alimentado por um novo aliado, um turbilhão confuso que fazia bailar as fotografias que tomaram forma num livro.
passados três anos de uma falsa catarse, fui levado a encarar de novo esse conjunto de imagens, abruptamente encerradas num universo temporal, como peças de um puzzle lírico obrigado a ser desfeito, decomposto, desconstruído,
O poema “Pequeño Vals Vienés” de Federico Garcia Lorca, musicado por Leonard Cohen e interpretado por Sílvia Pérez Cruz, reverberou em mim como um silêncio profundo ambientado em um lugar escuro, de onde emanavam ondas brilhantes de delicadeza. Pesquisei sobre ecos e descobri experimentos sobre acústica, em que são investigadas as formas das frequências sonoras que se formam ao atravessarem líquidos. Foi então que me ocorreu a questão: se eu pudesse fotografá-lo, que rosto teria este poema-canção? Então, construi um sistema em que foi usada uma pequena caixa-acústica, cuja membrana interna foi coberta por água e iluminada com luz led branca. Este sistema foi conectado à uma máquina fotográfica e à um computador, de onde provinha o som do poema cantado por Sílvia Pérez Cruz e Pajaro. O som da canção produzia imagens que vibravam na água, as quais eram captadas pela máquina fotográfica. Duas fotografias coloridas foram colocadas ao redor da caixa acústica como anteparo dos respingos de água. As fotografias refletiam suas cores na água mas, por serem minhas, acabaram por me incluir nas imagens que vibravam, ou seja, passei a fazer parte da obra. Como resultado, o meu trabalho se constituiu num vídeo. Mas, qual é o conceito deste trabalho? Linguagem, tradução, reverberação, diálogo? Imersão, ampliação, dissipação, vibração? A linguagem surrealista do poema de Lorca ganhou ecos com a música de Cohen e a interpretação de Sílvia-Pajaro, os quais chegaram até mim e eu os traduzi em ecos imagéticos, tal como se fossem fotografias de uma paisagem sonora. Qual melhor modo de se dialogar com o surreal?
Se na obra “Lorca’s Soundscapes” a singularidade das frequências sonoras ficou camuflada pela música de Cohen e pelo canto de Silvia Perez Cruz, em Auroras Surreais é possível contemplar a beleza das formas das frequências sonoras, produzidas na superfície da água existente sobre a membrana de uma pequena caixa acústica. A partir de um gerador de frequências sonoras, foi possível obter uma variedade de imagens, ao se investigar o intervalo de frequências sonoras perceptíveis ao ouvido humano. Mas, em outros níveis perceptíveis só ao coração, vibraram (em mim) as palavras que compõem o poema “Auroras Surreais”.
Ele. Ela. Eles. Eu.
Quem, a dançar aqueles sonhos?
Ele dizia o que não podia ser dito.
Ela cantava. Eu ouvia.
Reverberavam em mim ecos de paixões proibidas
com gosto de vidro e corte, um sabor de sal e conhaque.
Ele poetizava metáforas.
Ela cantava angústias.
No salão das ondas sonoras, a inenarrável valsa dançava.
Qual frequência guardava o segredo que a um só coração pertencia?
Mergulhados naquela valsa, reflexos meus.
Oh, valsa de um vestido único!
Amores insuspeitados traduzidos
em auroras surreais.