Reunir Stardust Memories (1980) e Caro Diario (1993) é confrontar duas linguagens cinematográficas que, sob diferenças formais evidentes, partilham a mesma obsessão pela identidade e pelo ato de criação: a do cineasta em confronto com a sua própria imagem, com o seu tempo e com o sentido do ato de filmar. Em ambos, o realizador transforma a câmara num espelho — um espelho deformante, às vezes cruel, mas sempre revelador.

Em Stardust Memories, Woody Allen constrói uma espécie de autoanálise onírica. O filme mergulha na confusão do artista que se tornou prisioneiro da sua persona pública. Allen revisita o seu próprio mito — o comediante intelectual nova-iorquino — e subverte-o, expondo o desgaste da criação e a fragilidade da fama. A sua mise-en-scène oscila entre o grotesco e o sublime, entre o riso e o desencanto, como se procurasse uma pureza que o próprio cinema já não pudesse oferecer.
Já Caro Diario de Nanni Moretti parece partir de um ponto oposto: a leveza do quotidiano, a errância pelas ruas de Roma, o humor como forma de resistência. Mas à medida que o diário avança, essa leveza torna-se também um gesto de exposição radical. Moretti abre o seu cinema à vida, à doença, à amizade e à cidade — e, ao fazê-lo, questiona o próprio papel do realizador enquanto observador do mundo. Onde Allen dramatiza a crise do criador, Moretti transforma a intimidade em método, fazendo do real um território poético e político.

  Entre ambos há um mesmo impulso de autorreflexão, uma mesma necessidade de transformar a dúvida em matéria cinematográfica. Stardust Memories e Caro Diario são, em última instância, dois modos de pensar o cinema através do cinema: um pela via da ironia e do desencanto, outro pela da ternura e do espanto.

  Assistir a este ciclo é ver dois cineastas a interrogarem-se, e com eles, interrogar o próprio espectador. Afinal, entre a memória e o diário, o que resta é o gesto de filmar como tentativa de compreender quem somos.

(Curadoria de Fábio Sequeira)


_ENG

To bring together Stardust Memories (1980) and Caro Diario (1993) is to confront two cinematic languages that, despite their evident formal differences, share the same obsession with identity and the act of creation: that of the filmmaker in conflict with his own image, his own time, and the very meaning of filming. In both, the director turns the camera into a mirror — a distorting mirror, at times cruel, but always revealing.

In Stardust Memories, Woody Allen constructs a kind of oneiric self-analysis. The film plunges into the confusion of an artist who has become a prisoner of his public persona. Allen revisits his own myth — the New York intellectual comedian — and subverts it, exposing the exhaustion of creation and the fragility of fame. His mise-en-scène oscillates between the grotesque and the sublime, between laughter and disenchantment, as if seeking a purity that cinema itself can no longer provide.
Caro Diario, by Nanni Moretti, seems to begin from the opposite point: the lightness of everyday life, wandering through the streets of Rome, humour as a form of resistance. Yet as the diary progresses, that lightness becomes an act of radical self-exposure. Moretti opens his cinema to life, to illness, to friendship, and to the city — and, in doing so, questions the very role of the filmmaker as an observer of the world. Where Allen dramatizes the creator’s crisis, Moretti turns intimacy into a method, making reality itself a poetic and political territory.

Between them lies the same impulse toward self-reflection, the same need to turn doubt into cinematic substance. Stardust Memories and Caro Diario are, ultimately, two ways of thinking cinema through cinema: one through irony and disenchantment, the other through tenderness and wonder.

To watch this cycle is to see two filmmakers questioning themselves — and, with them, to question the viewer. In the end, between memory and diary, what remains is the act of filming as an attempt to understand who we are.

(Curatorship by Fábio Sequeira)