Vícios
Vivemos em tempos de excesso de estímulos, de informação, de performance. Entre notificações, metas e expectativas, muitos de nós vamos nos afastando, pouco a pouco, do que realmente sentimos.
Esta breve reflexão nasce da observação do quotidiano, de uma inquietação partilhada e de um incidente inesperado e, de certo modo, mágico: um dia inteiro sem energia elétrica, sem os nossos habituais dispositivos externos de comunicação. Esse apagão, ao silenciar as distrações e nos devolver ao convívio com o tempo real e com nós mesmos, revelou algo inquietante: por que insistimos em repetir hábitos e vícios que, no fundo, não nos nutrem? O desconforto de estar a sós consigo, escancarado na ausência de estímulos externos, aponta para uma dinâmica psíquica mais profunda, que este ensaio breve busca explorar. Inspirado em relatos reais e no crescimento alarmante de casos de depressão, ansiedade e ataques de pânico em diferentes idades, o texto não pretende oferecer respostas prontas, apenas lançar um convite à presença, à escuta e a uma reconexão mais honesta com aquilo que nos habita.
O que alimenta um vício?
A vida se move em ciclos. O sol nasce, a noite cai, o corpo respira, a rotina se repete. Também nós repetimos. Repetimos gestos, escolhas, pensamentos, relações. Alguns desses movimentos nos sustentam. Outros, nos enredam.
Tudo começa pequeno. Um alívio, uma distração, um prazer. Um gole, uma notificação, uma conversa. O corpo experimenta, a alma se acomoda, e quando vemos... já voltamos ali outra vez. E outra. E mais uma. Porque algo naquele lugar nos dá a ilusão de que falta menos. De que agora vai. De que talvez, enfim, preencha.
Mas nunca preenche por completo. E então, seguimos buscando. Repetimos.
Há quem busque em substâncias, quem busque em amores, quem busque em trabalho. Hoje, muitos de nós buscamos nas máquinas. A Inteligência Artificial, tão eficiente, tão rápida, tão certeira, virou uma presença que nos acompanha como uma sombra obediente. Tira dúvidas, revisa ideias, estrutura discursos. Em silêncio, ela afirma: você está certo. E essa afirmação, esse aceno invisível, conforta de um jeito que nem sempre conseguimos nomear.
Mas por trás desse conforto, o que se move em nós?
Talvez a necessidade de não errar. De estar à altura. De ser admirado. Talvez o medo de não ser suficiente. Ou de não ser amado. E assim, criamos uma dependência disfarçada de eficiência. Começamos a consultar a IA para tudo. Não porque não sabemos, mas porque queremos certeza. Validação. Aprovação. Como quem volta ao mesmo lugar esperando, dessa vez, se sentir completo.
Essa dinâmica não é diferente do que vivemos em tantas outras áreas da vida. Como nos sites de relacionamento, por exemplo. A promessa de amor virou catálogo. Escolhemos, descartamos, marcamos encontros. E mesmo quando há conexão, lá dentro algo sussurra: será que não existe alguém melhor? Alguém mais bonito, mais profundo, mais interessante, mais como eu sonhei? E assim seguimos, em ciclos de quase-encontros, onde a expectativa pesa mais que a presença real. O outro nunca é o suficiente, não porque ele falha, mas porque já estamos em outro lugar, sonhando com o próximo.
Nos tornamos viciados na possibilidade. No clique. No novo. No que ainda pode vir.
E isso vale para tudo: a rede social que nos alimenta com curtidas, o corpo que queremos sempre melhorar, o feed que nunca termina. Porque, no fundo, o que estamos tentando calar não é a fome por coisas. É a dor de estar vivo. A solidão. A dúvida. O tédio. A ausência de sentido. E tudo que anestesia, mesmo por instantes, vira um pequeno vício. Um lugar para onde voltamos quando não queremos sentir o que está aqui.
A pergunta não é apenas por que começamos um vício, mas porque insistimos nele mesmo depois de perceber que ele não nos salva.
Talvez a saída não esteja no corte radical, nem na culpa. Mas na consciência. No gesto lento de estar presente. De sentir o desconforto até o fim, sem correr para preenchê-lo. De olhar para dentro antes de buscar fora. De aceitar que nada nem ninguém, nem máquina, nem promessa vai resolver tudo por nós.
Libertar-se é voltar para casa. E sustentar esse lugar interno, mesmo que ele doa às vezes. Mesmo que seja imperfeito. Mesmo que não venha com garantia.
Porque, no fim, um vício se alimenta daquilo que deixamos de sentir.
E a liberdade começa quando ousamos sentir de novo.
Leila Matheus Medeiros é psicóloga e mestranda em Neurociências Cognitivas e Comportamentais
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