O refúgio na arte, segundo “Station Eleven” (HBOMax, 2021)

“Station Eleven” é uma série da HBOMax criada e lançada em dezembro de 2021 a partir do romance homônimo de Emily St John Mandel.
Mais uma narrativa apocalíptica (de muitas) que nos coloca dentro de um mundo pós-pandêmico onde uma estirpe de gripe aniquila mais de 99% da espécie humana, mas que, concebido pela escritora em 2014, não podia deixar de vir à tona como conteúdo profético e arrebatador diante dos últimos factos acontecidos em 2020.
Aqui, não vamos atrás da catástrofe humana e de pequenos storylines de tragédia pessoal ou familiar: aqui somos atirados a um vazio de um mundo em colapso, abandonado, em que os poucos sobreviventes são convidados a uma profunda reflexão da sua condição (ainda humana) mas que já não é feita dentro dos parâmetros habituais. Não há laços, relações porque não há tempo para perdê-las e se desprender do outro: tudo acontece em curtas semanas e arrebata estas personagens a uma deriva sem fim.
David Sommerville, que já nos tinha dado uma experiência filosófica semelhante em “The Leftovers” (HBO, 2012) mostra-nos novamente o quão frágil é o nosso sistema de crenças e que baseado na impossibilidade do ‘o quê - se’, ou o ‘como - se’, não sabemos funcionar sem um processo de causa/consequência que seja completamente claro e contíguo.
Mas aqui, quando somos lançados a uma segunda narrativa da história, 20 anos depois, desenvolvida paralelamente ao ano da pandemia trágica, descobrimos um grupo de artistas em caravana pelo que sobrou do país e da civilização, a criar encenações de William Shakespeare, sempre à espera da possibilidade de um setup para a revisitação de Hamlet: a ‘Travelling Symphony’. Porque acreditam na possibilidade de uma certa redenção pela arte, diante dos vestígios de uma civilização que já se desvanesce e que só deixa sobrar um fraco exercício de memória, que se não é praticado pelos restantes, desaparecerá.
E é curioso que através de Hamlet ou outra qualquer obra de William Shakespeare poderia se contar (e recontar) uma história da humanidade. Isto leva-nos a outro storyline: a criança (Kirsten) que perde uma espécie de pai (Arthur) vítima da pandemia, ator em plena encenação de Rei Lear num teatro de Toronto conhecerá um livro desenhado chamado “Station Eleven” criado por uma antiga companheira de Arthur e que serve de apoio narrativo aos acontecimentos presentes na história. O próprio livro tem uma função terapêutica para Kirsten (e posteriormente para Jeevan) durante o desenrolar dos acontecimentos. Kirsten, graças a esta experiência junto com as artes narrativas, será a mesma personagem que impulsiona a caravana de atores e artistas de forma incansável, na região dos Grandes Lagos (arredores de Chicago) numa aventura com falsos profetas e tentativas (falhadas) de conservação da memória da civilização.
Mas a delicadeza com que a evolução do tempo nas personagens flui e conflui: vemos o valor do inesperado, como as rotinas são destruídas involuntariamente: Kirsten canta uma canção de natal para calar uma discussão, Jeevan encontra conforto numa casa onde as frases ditas pela família (que já não existe) estão guardadas em ‘sampling’ num teclado/piano de sala de estar e que se misturam com a música magnífica de Dan Romer como uma espécie de ‘plasma’ que toca em todos centímetros desta linha emocional que continua dentro da história e que nos remete a uma nova forma de conduzir a memória.
Também realização, criação de ambientes e guarda-roupa nos marcam, com uma altíssima qualidade.
Porque a memória é algo difícil de ser artificializado: ainda aqui surgirá uma ideia de criação de um museu da civilização (num aeroporto em ruínas nos arredores de Chicago) mas ficaremos com a ideia que uma história contada vale sempre mais do que lembranças estáticas colocadas num espaço e num tempo que parece parado à força.
Aqui, a força será sempre a de construir o novo. Esta sempre será a força natural de uma história.

Webgrafia:
https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2022/jan/30/station-eleven-slow-burn-vision-plague-ravaged-planet-bestseller
https://www.theguardian.com/books/2014/sep/25/station-eleven-review-emily-st-john-mandel
https://en.wikipedia.org/wiki/Station_Eleven
https://en.wikipedia.org/wiki/Patrick_Somerville
https://www.denofgeek.com/tv/station-eleven-ending-explained/

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